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Unindo literatura e história, ensaio social é tema do Prêmio Demócrito Rocha
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Unindo literatura e história, ensaio social é tema do Prêmio Demócrito Rocha

Uma das categorias do I Prêmio Literário Demócrito Rocha, o ensaio social é importante para refletir sobre costumes da sociedade; conheça o gênero
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Ailton Krenak é autor de
Foto: Alexandre Muniz/Divulgação Ailton Krenak é autor de "Ideias para Adiar o Fim do Mundo", "A Vida Não É Útil" e "Futuro Ancestral"

Há quase um século, em 1933, o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre lançou o livro "Casa-grande & Senzala". A partir de análise sobre os traços e desafios centrais da formação da sociedade brasileira, construiu uma das obras mais estudadas e referenciadas em temáticas sobre o povo brasileiro.

Além de Freyre, outros autores se notabilizaram ao apresentarem ideias, críticas e reflexões nos estudos sobre o Brasil. A análise é um dos pontos importantes do ensaio, contemplado no I Prêmio Literário Demócrito Rocha. O concurso é promovido pela Fundação Demócrito Rocha (FDR) e visa premiar autores em três categorias, incluindo ensaio social.

Segundo Fernanda Muller, docente do curso de Letras e do curso de Pós-graduação em Letras na UFC, o gênero "ensaio social" pode ser analisado como um "produto de uma reflexão de caráter fluido e multifacetado, situado no âmbito das ciências humanas, no limiar entre a historiografia, a sociologia e a literatura". Assim, consegue abarcar diferentes abordagens.

No Brasil, esse gênero começa a "florescer" a partir do Romantismo e da "criação" do Estado Brasileiro. Em meados do século XIX, com a reflexão de intelectuais brasileiros, surgiram os primeiros tratados e estudos "que analisavam aspectos específicos do nosso povo e da nossa cultura", a partir de um olhar transdisciplinar.

É a partir dos anos 1930, porém, que o ensaio social ganha contorno mais robusto no País. Para isso, foram fundamentais pensadores como Gilberto Freyre ("Casa-Grande & Senzala"), Sérgio Buarque de Hollanda ("Raízes do Brasil") e Antonio Candido ("A Formação da Literatura Brasileira").

Alexandre Barbosa, Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), indica que, tanto para o jornalismo quanto para a literatura, o ensaio parte da ideia que autor defende uma tese a partir de um fato. Assim, é uma defesa de argumentos a partir de elementos da realidade, mas com um formato mais livre, indo além da crônica e não sendo um artigo científico.

"O ensaio social parte dessa ideia de criar uma defesa de argumento em cima de um fato. Ele vai tocar em temas de importância para a sociedade. Alguns temas muito candentes são combate ao racismo, ao machismo, o respeito às identidades, luta pela igualdade e respeito à democracia", contextualiza.

E quais são os principais nomes do gênero "ensaio social" no Ceará? Jurada do I Prêmio Literário Demócrito Rocha, Fernanda Muller caracteriza o Estado como "palco de muitos ensaios e berço de muitos ensaístas brilhantes", com contribuições de autores como Rodolfo Teófilo, Juvenal Galeno, Raimundo Girão e Gilmar de Carvalho.

"Eles, dentre outros, contribuíram para construir o grande imaginário discursivo cultural do nosso Estado, com a sua diversidade de matizes advindas dos substratos dos povos que fazem a nossa terra (indígenas, afro-brasileiros, quilombolas, europeus), distribuídos pelo vasto território sertanejo e litorâneo e com características tão diversas, como aquela encontrada na Macrorregião do Cariri, por exemplo", contextualiza.

Atualmente, o campo do ensaio social segue com trabalhos importantes, e Fernanda Muller elenca estudos como os de Lilia Moritz Schwarcz. Ela lançou obras como "Brasil: Uma Biografia" (2015), com Heloisa Murgel Starling; "Lima Barreto — Triste Visionário" (2017); "O Sequestro da Independência (2022), com Carlos Lima Junior e Lúcia Klück Stumpf; e , "Imagens da branquitude" (2024). "São algumas obras paradigmáticas para entendermos melhor o tipo de gênero a partir de reflexões do Brasil contemporâneo", explica.

Júlio Bastoni, professor de Literatura Brasileira e coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras: Literatura Comparada da UFC, contribui ao debate ao apontar a proeminência de ensaio de autores indígenas, por exemplo, como Ailton Krenak. Seriam, pois, participações de vozes "historicamente desprezadas pelo ensaísmo brasileiro, falando a partir da sua própria enunciação".

Em sua visão, atualmente os ensaios têm ocupado postos mais secundários na academia. Se anteriormente autores clássicos como Caio Prado Júnior e Gylberto Freire tinham interesse em uma leitura mais totalizante da sociedade, hoje esse é um tipo de questão secundário no meio acadêmico.

"A academia tem problemas mais particulares, mais especializados, acerca, por exemplo, da violência em determinada cidade ou determinado estado, ou então sobre algum problema literário que pensa poucos autores e poucas obras… Então, essas áreas de conjunto estão cada vez mais raras na academia pelas próprias exigências científicas atualmente, que demandam especialização cada vez maior", compreende.

Para Bastoni, o ensaio social contribui para o registro de um imaginário e de uma identidade de um povo, ao mesmo tempo que "foge" desse imaginário. Ele cita o exemplo de Gilberto Freyre, que fala de "um equilíbrio que suaviza as diferenças" nas tensões raciais no Brasil, ao ponto de que "até hoje temos que brigar na negação dessa suposta democracia racial".

"Esse tipo de diagnóstico não é apenas um diagnóstico, ele projeta um imaginário, um modo de enxergar essa mesma realidade. Acho que essa é a grande contribuição, não apenas de um registro, mas também a projeção dessas formas de reconhecimento e de interpretação da realidade em que vive. O ensaio social - e outros gêneros literários - cria um modo de nos imaginarmos enquanto povo", analisa.

Doutor em Ciências da Comunicação pela USP, Alexandre Barbosa (jurado do Prêmio) acrescenta como o ensaio social atualmente pode contribuir para o combate ao machismo, ao racismo, para a defesa das ancestralidades e para o espírito de solidariedade com as minorias: "O ensaio social tem que se propor a dar visibilidade para temas que são importantíssimos nesse momento histórico. Os ensaios avaliados neste concurso se posicionaram fortemente diante de temas que são importantes, como ancestralidade, cultura popular, solidariedade ou combate ao machismo"

Imersão no Ensaio Social

Para quem deseja se aprofundar no ensaio social, o professor Júlio Bastoni indica "ir direto nas fontes", como Gustavo Barroso, Antônio Bezerra, Rodolfo Teófilo, Euclides da Cunha e Gylberto Freire. Há, porém, um acréscimo: consultar a obra "O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil", do antropólogo, historiador, sociólogo e escritor Darcy Ribeiro.

"Essa talvez seja a grande súmula, o grande resumo de todos os pensadores do que se produziu mais contemporaneamente na academia. O Darcy Ribeiro tem essa vantagem entre os antigos ensaístas de ter um texto muito bonito estilisticamente. Um texto escrito no final da sua vida e um coroamento da obra de teoria acerca do povo brasileiro", pontua.

Palco Vida&Arte

Em sua quinta edição, o projeto "Palco Vida&Arte: Letras e Livros" reúne ações voltadas para celebrar escritores(as) cearenses ou radicados(as) no Ceará. Uma das iniciativas é o I Prêmio Literário Demócrito Rocha, projeto que se desdobra em ações audiovisuais. Nesta quarta-feira, 4, às 11 horas, uma live apresentada por Isabel Costa recebe o escritor Mailson Furtado e o jornalista Renato Abê para conversa sobre literatura. O bate-papo será veiculado nos canais do YouTube e do Facebook da Fundação Demócrito Rocha e do O POVO.

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