Logo O POVO+
Sexo e arte: como obras eróticas mobilizam a quebra de amarras sociais
Vida & Arte

Sexo e arte: como obras eróticas mobilizam a quebra de amarras sociais

Das estátuas gregas ao OnlyFans, o erotismo mexe com os sentidos simbólicos e mobiliza a quebra de amarras sociais
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
aquela fotografia que eu nunca fiz / 2023 / carvão sobre papel / 21 x 29,7 cm (Foto: Alice Dote/Divulgação)
Foto: Alice Dote/Divulgação aquela fotografia que eu nunca fiz / 2023 / carvão sobre papel / 21 x 29,7 cm

"A liberdade é erotismo puro", define a escritora Kah Dantas. A resposta surgiu após ela refletir como é se "desnudar" para seus leitores por meio das palavras escritas em seus livros, apontando o ato como uma "forma bonita de liberdade" de "contar segredos nas entrelinhas, compartilhar imagens e pensamentos íntimos " — sabendo que "o mesmo vai acontecer com quem está lendo".

A etimologia da palavra "Erotismo" vem de Eros, que na mitologia grega era filho de Afrodite e deus do amor, da paixão e, claro, do erotismo. E esta figura foi um grande representante da temática na arte clássica grega, que ocupou pinturas e mosaicos durante o século V a.C.

Mas não é só a Grécia Antiga que bebeu do erótico em suas obras, ao longo da história, o sexo e a sensualidade foram inspirações. Em Pompeia, no Império Romano, ele não estava exposto apenas artisticamente, mas fazia parte da cultura da sociedade local. Na Índia do século IV d.C, o livro "Kama Sutra" utilizou desenhos para representar posições sexuais e como realizá-las.

Nos movimentos artísticos, o erotismo mais uma vez entra nas artes europeias: o período renascentista (século XIV e XVI) trouxe na literatura, em verso e prosa, sendo abordados, por exemplo, pelos italianos Giovanni Boccaccio e Pietro Aretino. Na França do século XVIII, pré-revolução francesa, a temática foi explorada pelo Rococó em pinturas e esculturas.

O Brasil não fica de fora dessa lista. No século XX, a literatura nacional recebeu obras de grandes escritoras como Olga Savary, Adélia Prado e Hilda Hilst, enquanto o cinema, a partir da década de 1970, assistiu ao auge da "pornochancada" — um gênero protagonizado pelo sexo.

Voltando ao presente, Kah Dantas é uma das atuais escritoras de literatura erótica no País. Leitora ávida desde a infância, foi na adolescência que as narrativas eróticas adentraram a lista de consumo da cearense, que as adquiriam em bancas de revistas por "algumas moedas".

"Esse tipo de texto me tocava e me fazia querer descobrir mais de mim mesma. Então, passei a explorar essa curiosidade tanto na minha vida pessoal quanto na própria escrita. E foi nessa época que criei meu primeiro blog de contos eróticos, aos 16 anos", compartilha.

De seus quatro livros publicados, três têm o erotismo presente na narrativa: "Inhamuns" (2021), "Orgasmo Santo" (2020) e "Águas abundantes de um planeta recém-nascido" (2022). Segundo ela, eles surgiram, "em maior ou menor medida", de "um derramamento" dela, que seria um "transbordamento que acontece quando quem observa escreve mergulha no mundo".

Essa liberdade, entretanto, pode ser uma faca de dois gumes para os autores, como ela elabora: "A partir do momento em que você compreende que a qualidade e o enredo daquele texto poderão ser julgados somente pela presença supostamente incômoda do erótico, do pornográfico, isso torna outras preocupações com a forma, o conteúdo e a recepção, no sentido de reprimir a escrita, desnecessárias".

O erotismo começou na vida de Kah nas páginas de livros, mas foi além, a levando a explorar a si mesma e outros meios de trabalhar com essa temática. Atualmente, a escritora possui duas contas de conteúdo adulto, nas plataformas OnlyFans e Privacy, além de um "eroticast" — podcast com quatro episódios voltados para compartilhamento de "crônicas, contos e causos eróticos".

"Percebi que poderia ganhar um bom dinheiro unindo duas paixões: escrita e orgasmos. Foi assim que surgiu o meu canal pornográfico 'Orgasmo Santo', cujo título nomeia também o meu blog atual e o meu livro de contos eróticos".

Em seu canal, a cearense une arte ao conteúdo adulto, entregando aos assinantes "mídias acompanhadas de poesia e prosa bem escritas, um conteúdo diferente do que é oferecido na maioria dos canais". "Acho que tudo tem seu valor e seu papel a cumprir, mas fico feliz de saber que posso atingir um bom público sendo eu mesma, produzindo um conteúdo amador, real e que abraça minha paixão pela literatura", arremata.

"A escrita é capaz de ocupar lacunas deixadas pelas imagens e vice-versa. Ambas podem se complementar de forma harmoniosa, apaixonada, e aumentar a experiência leitora ou audiovisual", aponta.

Continua nas páginas 4 e 5

 

Nas páginas do livro

Assim como Kah Dantas, Mika Andrade também é uma escritora cearense de literatura erótica. Já tendo lido obras dentro da temática, como “Delta de Vênus” (1978), de Anaïs Nim, a escrita nesse campo veio de forma inconsciente com o poema “As querências de Lilith”, publicado na “ Antologia Erótica de Poetas Cearenses – O Olho de Lilith” (2019).

“Quando estava pesquisando para ser um conto, não tinha na minha cabeça para ser erótico, queria spo escrever sobre Lilith de uma maneira sarcástica e desafiadora — que enfretasse o machismo. Mas acabei escrevendo um poema erótico curto. Por isso digo que foi um coisa espontânea, porque nunca tinha escrito nada erótico”, conta.

Mika iniciou sua escrita na literatura erótica em uma época favorável, visto que aponta um aumento nas publicações de obras eróticas, principalmente as escritas por mulheres. Ainda assim, chama a atenção que esse mercado receptivo é, geralmente, o das editoras independentes — ainda tendo aqueles que são lançados com campanhas de financiamento ou pela Amazon.

Para ela, inclusive, é “um pouco contraditório” que tenham aumentado a publicação de livros eróticos em todo País e, ao mesmo tempo, o conservadorismo na sociedade brasileira também tenha aumentado. “Tive sorte, até hoje pelo menos, de nunca ter encontrado uma crítica que seja conservadora”, afirma.

Em sua concepção, porém, a literatura erótica no Brasil pode ser ainda mais explorada: “Cada autor e autora tem a sua mente e criatividade, então tem um mundo de histórias a serem contadas, e, principalmente, dá sim para entrelaçar a literatura erótica com uma outra arte. Acho que quanto mais abrangente for, melhor. Quanto mais acesso também para as pessoas poderem chegar até essa arte, (melhor). Porque não adianta estarmos fazendo e não estar chegando nas pessoas”, afirma.

O mineiro Koda Gabriel encontrou uma forma de tornar suas histórias acessíveis para o público e também treinar sua escrita: uma newsletter, por onde compartilha pequenos contos. “Queria que fosse uma coisa gratuita, porque como é uma coisa que uso para melhorar minha escrita, queria que fosse algo que as pessoas pudessem receber cientes que é algo meio cru, que não passou por diversos processos editoriais”, explica.

Foram a partir desses minicontos focados em casais LGBTQIAP+, que nasceu seu livro “Só uma rapidinha”, publicado digitalmente. Assim como Mika, ele chama atenção que a maioria dos autores eróticos, se referindo especificamente aos de história LGBTQIAP+, estão no mercado independente.

“É um misto de que nem tudo cabe no mercado tradicional, como também preconceito de algumas pessoas que não vão querer ler”, reflete e, em seguida, completa: “Acho que independente tem sido um cenário para essas pessoas poderem tentar”.

Apesar de acreditar que o mercado tenha melhorado para livros eróticos, ele aponta para uma presença maior de publicações de títulos estrangeiros, ressaltando os escritos por autores estadunidenses. “Esses livros vendem e muito. Então público existe, mas ao mesmo tempo, não sei se a literatura nacional está com o mesmo alcance que essas pessoas que foram traduzidas. Tem chance de crescer nos próximos anos, mas hoje o cenário ainda é de disparidade”, argumenta.

O que poderia justificar o aumento desse público e procura é algo que Mika Andrade também comentou que acontece consigo: a possibilidade de um autoconhecimento. Segundo a autora cearense, sua mente tem aberto a questões como sexualidade e gênero desde que iniciou a escrita na área

Para Koda, as narrativas podem não agradar a todos, mas para aqueles que gostam dessa temática, se mostra como um bom caminho para se “entender melhor”.“Já recebi algumas mensagens de pessoas falando o quanto a newsletter ajudou elas a se verem melhor, a verem a própria sexualidade de uma forma mais tranquila; a vislumbrar possibilidades de formas de se relacionar”, conta.

E finaliza: “Acho que foi muito libertador para mim também, quanto escritor, para me deixar testar coisas na escrita”.

tem um sad eyes / 2023 / óleo sobre tela / 50 x 40 cm
tem um sad eyes / 2023 / óleo sobre tela / 50 x 40 cm

Nos traços de uma obra

As artes plásticas fornecem um amplo espaço para exploração do erotismo, conversando com e sobre a sensualidade em seus traços. Foi isso que levou o artista ARMário a desenhar obras eróticas: “O desejo de expressar e compartilhar sentimentos profundos que sentia sobre o erotismo na arte".

“Para mim, era crucial mostrar que a arte erótica não é sinonimo de pornografia, servindo como um meio significativo para explorar e comunicar aspectos íntimos da experiência humana. Ao mergulhar nesse campo, procurei entender como o erotismo pode ser representado de maneira respeitosa e enriquecedora e poético”.

Trazendo corpos LGBTQIAP+ em seus trabalhos o artista busca “valorizar a pluralidade dos corpos” que existem na comunidade de forma poética, evitando reforçar padrões estéticos presentes na sociedade. Esta uma forma de ir contra o “mercado” da arte erótica, que ainda se centra em uma “visão heteronormativa do desejo”.

É esta visão, inclusive, que atrai por muitas vezes uma “reação” negativa a suas obras. Ele denuncia uma sabotagem que acontece em suas redes sociais após publicar uma nova obra: uma série de denúncias de usuários que não se identificam com sua linha de pesquisa. Essas ações geram suspensões temporárias o perfil “por compartilhar arte homoerótica”.

Ele ressalta, porém, que o mesmo não acontece com obras heterossexuais que também retratam o erotismo. “ No entanto, artistas queer têm lutado para criar seu próprio espaço e oferecer novas narrativas que ampliam a representação e desafiam as normas estabelecidas”, pontua.

“Quero mostrar que desejo e afeto são inseparáveis e que corpos LGBTQIAP+ merecem ser vistos em toda a sua complexidade. O erotismo, nesses casos, é apenas uma das muitas camadas que compõem a vivência dessas pessoas. Ao retratar momentos de carinho e conexão, procuro desmistificar a ideia de que o amor queer é apenas sexual e evidenciar a beleza do afeto que também faz parte do todo”, sustenta.

Não apenas a luta pela quebra de padrões, a abordagem de corpos LGBTQIAP+ em obras eróticas permite tanto a quem consome, como a quem produz, uma aceitação de si. “ Ver sua própria sexualidade e identidade refletida na arte pode ser profundamente empoderador, ajudando essas pessoas a se sentirem vistas e validadas”, defende.

Para a artista e pesquisadora Alice Dote, trabalhar com o erotismo na arte tem sido um “trabalho de exploração sobre si e, simultaneamente, de esquecer” o seu nome. Em suas obras, a cearense trabalha com “imagens-de-imagens”, utilizando fotografias feitas de forma analógica ou digitalmente, da sua galeria pessoal, de amigos ou “estranhos familiares”, que retratam o cotidiano.

Mas a artista destaca que o erótico, em seus trabalhos, não está apenas nas cenas “entendidas como eróticas”, mas também pela relação que ela desenvlve com as superfícies que recebem esses traços, “como a tela e papel”, “ou o gesto de criação”. “Num primeiro momento, podemos achar que o conceito do ‘erótico’ está nas imagens figuradas nas obras. Mas é como se isso fosse uma ‘armadilha’: o erótico está, também e sobretudo, no meu corpo-a-corpo com e nos processos de criação”, elabora.

Esta visão pode se apresentar contrária a uma outra já enraizada sobre o erotismo na sociedade. Como lembra a pesquisadora, historicamente, a arte ocidental produz obras sobre a sexualidade de mulheres a partir do olhar de homens — que seria o “protagonista como artista e suposto espectador preferencial”.

“Essa é uma das marcas mais evidentes do regime de visão dominante e, nela, não interessa que a mulher detenha o olhar”, argumenta. Mas isso vem sendo desafiado por artistas contemporâneas e, segundo Alice, é onde estaria o “problema” com o erotismo na arte atualmente.

Não se trataria de um tabu, mas um desentendimento: obras de arte eróticas pelo olhar de mulheres. “Entendo que meu trabalho, como de outras artistas contemporâneas, ainda se debate com essa herança, por um lado, e, por outro, se filia a uma genealogia de artistas (mulheres ou dissidentes) que, de objeto de contemplação ou exploração, passam a sustentar o desejo através da imagem”

“É justamente nesse deslocamento - quando as coisas parecem estar em lugares onde não deveriam ou não costumam estar - que se gera alguma sensação de incômodo, de constrangimento, até mesmo a quem aprecia aquela arte”, aponta e, em seguida, conclui: “Uma mulher pintando a própria pintura: erótico o movimento em direção ao que se deseja”.

...mas cuidado

A arte erótica é bela. Ela deleita os olhos nas diferentes linguagens em que pode ser desenvolvida e encontrada. Mas um cuidado é necessário para essas obras: a sexualização e objetificação dos corpos que as compõem.

Esse cuidado e atenção não se limita apenas a uma área. Nas artes visuais, por exemplo, para Alice é necessário "identificar quais as fraturas sociais, culturais, regionais, raciais, de gênero, que aproximam e dividem todas essas obras reunidas sob uma mesma categoria de 'erótico'".

Já ARMário tem como objetivo evitar a hipersexualização de corpos LGBTQIAP+ ao representá-los em suas obras. "Para evitar a objetificação, busco sempre mostrar a humanidade por trás desses corpos, captando não apenas o desejo, mas também a emoção, a vulnerabilidade e as histórias pessoais de cada um", explica.

Na literatura, Mika Andrade reforça ser necessário ter cuidado com as palavras escolhidas, pois há uma "linha tênue" que pode ser ultrapassada a depender do termo utilizado.

"Como mulher, sei como é ser assediada e objetificada. Não quero passar isso no meu trabalho, na minha literatura, então tenho esse cuidado de representar a autonomia do nosso corpo e desejos de forma humana, sem objetificar e estereotipar", garante a escritora.

Mas ao pensar no erotismo, é apenas um corpo despido que passa por sua mente? Para Lila Almeida, graduada em Cinema pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e Mestre em Artes pela Universidade Federal do Ceará (UFC), isso não é necessariamente essencial para essa narrativa.

"O erotismo envolve a criação de uma tensão, uma atmosfera que desperta desejos e fantasias, e isso pode ser alcançado por diversos caminhos que não incluem necessariamente a exposição do corpo nu. Fetiches, por exemplo, são uma forma de flertar com o erótico sem que a nudez seja um elemento central, mostrando como o desejo pode se manifestar de maneira complexa e multifacetada", explica.

No cinema, por exemplo, a pesquisadora aponta que o erotismo sempre serviu como um estratégia para atrair público, pensando no homem como o espectador principal e o corpo da mulher como o objeto a ser desejado.

Para ela, esse tipo de produção, como as famosas "pornochanchadas" brasileiras de 1970 e 1980, não seriam erotismo, "mas sim uma busca de gozo masculino". "O verdadeiro erotismo no audiovisual deve questionar e subverter essas representações tradicionais, abrindo espaço para olhares diversos e relações de poder mais equilibradas, onde o prazer não esteja condicionado ao controle e à objetificação do corpo alheio", sustenta.

Em séries e filmes, por exemplo, observa-se uma presença maior da nudez de mulheres. Mas isso vem com outro porém: os corpos retratados costumam ser os de mulheres brancas, magras e jovens - dentro do que seria o padrão convencional de beleza.

"Historicamente, corpos que fogem dos padrões estabelecidos – mulheres negras, gordas, trans, ou aquelas que envelhecem – têm sido invisibilizados ou, quando representados, muitas vezes aparecem sob um viés punitivo ou depreciativo", destaca Lila.

E continua: "A inclusão de corpos diversos no cinema ainda é um desafio. Corpos que não se enquadram nos padrões são frequentemente dessexualizados ou vistos como 'menos desejáveis', o que reforça a noção de que apenas determinados tipos de corpos são dignos de desejo ou de protagonizar narrativas eróticas".

A mestre em Artes acredita que o audiovisual "ainda precisa expandir suas representações", colocando outros corpos também "como dignos de desejo, prazer e protagonismo".

"O erotismo, ao contrário da exploração visual gratuita, pode e deve ser acessível a corpos que historicamente foram marginalizados ou invisibilizados, afirmando que a sensualidade e o desejo não pertencem apenas a um único tipo de corpo", conclui.

Citações

"Dois dias mais tarde, ela desaguou, quase uma década e meia mais jovem, na boca de Zé. 0 homem não acreditava: no motel do bairro distante, com espelho no teto refletindo a cama redon-da, ela dançava sentada sobre sua boca, gemendo palavras impróprias e chamando pelo seu nome, "ai, Zé", ela gemia, regozijando no meio da comilança" - "Orgasmo Santo" (2020), Kah Dantas

"A boca grande engolia o corpo pequeno como se fosse uma epopeia mítica - e apocalíptica -, sob um céu de nuvens densas e escuras que se erguem acima de grandes e sangrentas batalhas e cujos heróis, como esperado, sobrevivem no final, abraçados ao milagre.

Se eu acreditasse em Deus, ele pensava, provavelmente 0 encontraria com a bússola da língua no meio da pele dela, misturado aos pelos e suor, como um deus epidérmico que recebesse orações feitas de arrepios e calor". - "Orgasmo Santo" (2020), Kah Dantas

"Dancei no seu rosto e pari girassóis na tua boca, chamando ai meu deus, ai meu deus, enquanto gozava, banhando teus lábios do gosto tantas vezes só imaginado". - "Orgasmo Santo" (2020), Kah Dantas

O que você achou desse conteúdo?