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"Viver é partir, voltar e repartir"
Vida & Arte

"Viver é partir, voltar e repartir"

Barracas de praia em Fortaleza se transformam em espaço de cultura e acolhimento para minorias e população em vulnerabilidade
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Barraca Foi Sol, na Barra do Ceará, recebe a festa Sambaile (Foto: Foi Sol/Divulgação)
Foto: Foi Sol/Divulgação Barraca Foi Sol, na Barra do Ceará, recebe a festa Sambaile

O título da reportagem é um dos versos do refrão da música “É Tudo Para Ontem”, do álbum “AmarElo” (2020), de Emicida. A canção é o que norteia Alécio Fernandes, vulgo “Pretim Dalest”, um dos proprietários e idealizadores da barraca Foi Sol, ponto de cultura na Praia da Leste Oeste.

Criado em 2018, o local surgiu como resultado de ações que Dalest já desenvolvia na comunidade onde nasceu, no bairro Moura Brasil. “A Foi Sol vem de um movimento coletivo, antes dela existir tínhamos a ‘Aqui tem sinal de vida’ que era uma biblioteca comunitária e no coletivo ‘Na Tora’ desenvolvemos ações de sarau e poesia”, relembra Alécio.

Por ter crescido em projetos sociais, o produtor cultural sentia a necessidade de “dar algum retorno” para a sua comunidade por meio de ações culturais. O também empreendedor usou as experiências adquiridas em formações da rede Cuca e da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho.

“Fui vendo a importância de trabalhar a memória e identidade do meu bairro como forma de construção da minha identidade. Se eu consigo trazer a identidade do meu bairro para dentro de um lugar que no caso é a Barraca Foi Sol também consigo dar esse retorno e contribuir com o meu território”, destaca o realizador cultural.

A intenção não era somente criar mais um local de serviço na praia, mas um espaço de “potências faveladas”, segundo Dalest. “Onde a força do encontro, da troca e do compromisso faz com que a gente consiga criar essa rede de potência, produção, cultura, arte e empreendedorismo”. A relação entre a barraca e o lugar onde está é tão próxima que o nome vem da gíria “foi sal”, usada como sinônimo de algo que deu certo.

A quase 8 quilômetros da Foi Sol e com menos tempo de existência, fica localizada a Barraca Dream. Fundada em 2022 pelos irmãos Júnior, Lucas e Gustavo Ribeiro, criados e nascidos na Barra do Ceará, o espaço também surge como um modo de se conectar com a comunidade do entorno através da promoção de ações culturais, além do serviço de bar e restaurante.

“Nós estamos aqui (Barra do Ceará) há 30 anos, sempre estivemos aqui na praia. E aí pensamos em trazer a minha experiência de bartender com a dos meninos de gerenciar um negócio e começar a partir daí. Depois fomos inserindo outras áreas que tínhamos interesse como a prática de esporte e eventos culturais”, relembra Júnior que antes de gerenciar a Dream atuou como bartender em restaurantes diversos na Capital por quatro anos.

As ações culturais tomaram força com o incentivo também de Smith, responsável pelas produções audiovisuais da Dream e pelo Vila Roots, coletivo de reggae. O projeto foi criado pelo filmmaker e mais 6 amigos, brotando na ponte da Barra e ganhando mais força no Cuca Barra, devido a demanda de público. “Nós realizavamos o reggae e também uma feirinha de empreendedorismo, só com mulheres, para fortalecer a economia da quebrada”, conta Smith.

A iniciativa ficou na Rede Cuca de 2018 até 2022, por questões institucionais. “Cheguei para o Júnior e falei: ‘mano eu adoro o trance, mas e se a gente também incluísse o reggae na programação?’”, relembra. “Eu e a Maresia, como articuladores culturais, percebemos que o projeto precisava continuar quer fosse aliado a uma instituição pública ou não”, frisa o também fotógrafo e editor de vídeos.

“Nós pensamos a Dream não só como um bar ao livre, mas um espaço onde projetos culturais possam acontecer”, salienta Júnior. Além do reggae, o espaço recebe aulas de yoga gratuitas e rodas de conversa sobre pautas relevantes como uso medicinal de cannabis.

Para Alécio Fernandes, um dos donos da Barraca Foi Sol, esses pontos culturais em lugares inesperados como as barrcas de praia mostram que as comunidades periféricas podem se unir pela potência em vez da dor. “Não queremos falar sobre nossas dores, já falei muito sobre isso, perdi pessoas”, conta o empreendedor conhecido como Pretim Dalest.

“Saber de onde você veio, diz para onde você vai, tem uma frase que falo isso eu acho. Acredito muito nisso de voltar para as suas raízes e entender de onde vim e para onde vou. Eu vim mesmo desse lugar precarizado e vou retornar para ele para contribuir com minha comunidade”, afirma Dalest. “Tem uma frase do Emicida que eu gosto muito que ele diz ‘viver é partir, voltar e repartir’ e a Foi Sol é isso”, ilustra o produtor cultural.

Seguindo a mesma linha de pensamento, a Barraca Dream também proporciona uma melhora no bairro onde está localizada, além de oferecer entretenimento para o público local. “E isso também trouxe bastante público do entorno, algo que não tínhamos tanto no início. Nós temos ciência da nossa importância e colaboração com isso quando iniciamos aqui o projeto”, conta Júnior Ribeiro, gerente do empreendimento.

“Aqui era um local totalmente deserto com muito lixo e escuro. Nós realizamos a reabilitação desse espaço e nesses dois anos estamos gerando renda para a nossa equipe de 5 pessoas e auxiliando na economia local de alguma forma”, destaca o bartender. A barraca fica localizada bem de frente para o encontro do rio com o mar, na Barra do Ceará.

Espaço seguros

Em 1988, nasce a Barraca do Joca, ponto de concentração da Parada LGBTQIAPN+ de Fortaleza. Criada por José Silva de Carvalho, apelidado de Joca, o espaço se tornou um lugar seguro para a comunidade LGBTQIAPN+ na Capital. “Foi acontecendo de forma natural”, conta o proprietário, natural de Beberibe.

“Nós encorajamos muitas pessoas a se sentirem confortáveis com a sua sexualidade. Nós já perdemos muita gente, conheci jovens que já perderam a vida, que foram para a prostituição por causa da falta de aceitação da família”, detalha o empresário, que mora em Fortaleza desde os 10 anos. O espaço surgiu em Fortaleza numa época em que ter uma orientação sexual fora do padrão ainda era malvisto pela sociedade.

“Várias vezes a polícia vinha e fechava a barraca quando dois homens pegavam na mão um do outro, não podiam nem se beijar”, revela Joca. O dono do empreendimento lembra que apesar da opressão sofrida, encontrou na comunidade e nos amigos forças para resistir e permanecer.

Para Alécio Fernandes, um dos proprietários da barraca Foi Sol, esses lugares também surgem como uma resposta ao sistema que não recusa a existência de minorias. “A Foi Sol é um lugar de acolhimento, quando olhamos para cá e a galera chega para se divertir e acaba fazendo um networking orgânico. Tal hora você tomar sua cerveja, comer a peixada da minh mãe e tal hora está montando um projeto, porque a galera se sente confortável”.

“O movimento que fazemos não é de produção de economia criativa, cultura e de arte, é de produção de vida, estamos cansados de falar sobre o luto. Antes eu costumava citar uma frase que dizia que o ‘luto me movimenta para a luta’, mas estou cansado disso”, reflete o também produtor cultural.

“Nós vamos falar sim de amigos que se foram por causa do sistema, lembrar deles, mas lembrar também do porquê se foram, mas entender que a Foi Sol é um espaço que surge para dizer que essas coisas não podem se repetir. Estamos aqui para potencializar sonhos, não tem coisa melhor do que poder sonhar e realizar”, salienta o empreendedor Alécio.

Dalest, como é conhecido, destaca que para além do entretenimento, seu espaço está aberto para impulsionar as ações de pessoas da comunidade, como feirinhas, escolas de surf, entre outras. “O rolê da Foi Sol é dizer para a galera ‘cara, vocês são foda’. O sistema quer calar nosso potencial através do racismo, transfobia, homofobia, mas a galera chega aqui e vê que pode, que consegue”.

“E a gente se vê aqui, quando chegamos vemos pessoas com cor da pele parecida com a nossa, formato de rosto, cabelo, então isso une também. O que nos une mais do que a dor é a potência. A importância dela é fazer com que nosso público se sinta vivo, importante, sabe?”, finaliza Alécio.

Política do bem-viver

 

Espaços na praia que aliam o consumo com a promoção de cultura surgem como uma resposta à falta de políticas públicas, conforme afirma Alécio Fernandes. “O estado nem sempre consegue acolher as pessoas da periferia, então procuramos mostrar que nem todas as políticas públicas estão dentro do estado”, salienta um dos proprietários da Barraca Foi Sol.

“O que nós fazemos é política pública, o que a gente desenvolve é política pública e a gente só precisa ter um pouco mais de legitimidade institucional o que pode vir inclusive por meio do apoio a iniciativas como a nossa”, reflete o também produtor cultural. As ações culturais para benefício da comunidade onde está inserida não se limita somente à realização de eventos como o Dobingo e o Sambaile.

“Somos um ponto formativo também. Temos o Soulest, que é um espaço criativo onde a gente consegue trazer a formação como forma também de construção de perspectivas e de sonhos”, exemplifica Dalest. “Nossa maior resposta para o sistema racista é mostrarmos o quanto somos potentes por meio da profissionalização, da formação e da criação de estratégias para trazer recursos para nós”, destaca o empreendedor.

Para Alécio, falar de bem viver é também possibilitar o acesso a discussões sobre temas como organização financeira. “E aí falar de grana sem medo, se liga? Não no sentido da ganância assim. Mas assim, poxa, vida, eu preciso trabalhar, preciso ter um retorno financeiro para poder pagar meu aluguel, minha energia, preciso comer bem”.

“Vemos pessoas com privilégios desfrutando das melhores coisas e por que nós não podemos também?” questiona Dalest, que vê as formações oferecidas na Foi Sol como ferramentas para a melhora da qualidade de vida da sua comunidade. O produtor cultural também disponibiliza o espaço para a atuação de outros empreendedores que moram na comunidade do Moura Brasil, onde a barraca está localizada.

““Nós trabalhamos muito com a ideia da geração de renda, então quanto mais a gente consegue descentralizar um recurso que está concentrado nas mãos de poucas pessoas e distribui entre quem está mais vulnerável, que são pessoas que tem muita potência e não são valorizadas, conseguimos potencializar a comunidade”, afirma Alécio.

“A ideia da barraca é também ampliar e fortalecer artistas, não só da parte musical, mas da performance, dança e empreendedores. Nossa comunidade é um berço também de várias marcas locais como a Hut Street, Mancuda, a Fortal Street, entre outras”, exemplifica Dalest.

 

Barracas de Praia para além do serviço

Barraca Foi Sol

Quando: segunda a terça-feira

Onde: Moura Brasil (próximo ao espigão da Praia da Leste Oeste)

 

Barraca Dream

Quando: segunda, quinta e sexta-feira das 14h às 20h

Onde: R. Dr. José Roberto Sale, 783 (próximo ao Marco Zero e ao Polo de Lazer da Barra do Ceará)

Barraca do Joca

Quando: segunda a domingo, das 8h às 23h

Onde: Avenida beiramar 3101 b25A - Meireles

 

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