Recém estreada no horário nobre da Rede Globo, a novela “Mania de Você”, de João Emanuel Carneiro, terá duas personagens bissexuais. O enredo dessas pessoas, no entanto, reforma mais um estereótipo dessa sexualidade: a confusão.
Vivida por Vanessa Bueno, Diana é uma dona de casa que abandonou seu trabalho para se dedicar integralmente à família e ao marido Hugo (Danilo Grangheia), com quem tem um casamento infeliz. Tudo muda em sua vida quando ela se aproxima e se apaixona pela vizinha Fátima, interpretada por Mariana Santos, que também vive um casamento infeliz com o marido Robson (Eriberto Leão). As duas passam a viver um romance escondido.
A história parece comum, pois é como a bissexualidade tem sido representada nas produções audiovisuais do Brasil. Segundo a produtora e realizadora de cinema, Camilla Osório, os filmes e novelas tendem a abordar pessoas monossexuais (hétero, gay e lésbicas) no audiovisual. “Eu já vivi isso de estar num pitching de roteiro e ouvir isso e falarem que não iam colocar uma personagem como bissexual, porque é ‘muito confuso’. ‘Coloca logo ela como gay ou lésbica, porque aí é uma coisa só’, dizem. Seguem a lógica do ‘fica mais fácil do espectador entender’”, diz.
Camilla, que é fundadora da produtora de cinema “Mar de Fogueirinha”, conta que não teve nenhuma referência bissexual na TV durante o amadurecimento: “Eu não consigo me lembrar de um produto cultural que tivesse uma personagem que expressasse essa vivência, de quando eu era jovem, de quando eu estava nesse processo de formação. Na verdade, até hoje é muito difícil encontrar”.
“É muito difícil ver personagens bissexuais porque o que acontece no cinema ainda hoje é que, sempre que há um personagem que é desviante da norma patriarcal heteronormativa, essa pessoa é frequentemente desumanizada. Algo que eu acho muito comum e muito ruim é que, se tem uma personagem bissexual, o problema dela na história é ser bissexual. Isso faz com que ela não se pareça muito com uma pessoa”, destaca Camilla.
A cineasta afirma que uma razão para ela ainda não se identificar com nenhuma personagem é por achar que bissexuais são “desumanizados” nas produções audiovisuais: “Mesmo que você tenha uma pessoa se relaciona com homens e com mulheres, ela é uma personagem bissexual que eu não consigo me identificar, porque ela não parece muito com a pessoa de verdade, ela é muito plana, muito rasa, não tem camadas, é o que acontece na maioria das vezes quando se dá o raro caso da personagem ser bissexual”.
Para a atriz Jenniffer Joingley, que atuou no longa-metragem cearense “Cabeça de Nego”, afirma que personagens bissexuais sofrem com a má representação nas telas: “Essas representações mais estereotipadas da comunidade bissexual em si foram normalizadas na mente das pessoas, mas ainda não é compreendida na sua totalidade. Por exemplo, um homem bissexual ainda é olhado torto, principalmente se ele for mais afeminado do que um cara heteronormativo, ainda que ele seja gay”.
“Para os bissexuais é mais difícil ter produções sobre. Quando é retratado, quando uma cena ou outra está falando disso, cai em estereótipo de um menáge, algo pejorativo que pode acabar reforçando estereótipos para a comunidade mesmo”, destaca.
Ela conta que os estereótipos das produções audiovisuais são reflexos de preconceitos gerais da sociedade, vividos por bissexuais no dia a dia. “Isso acontece quando chamam bissexuais de pessoas indecisas, ou quando falam ‘Ah, tem mais opção que todo mundo, porque fica com homem e com mulher’”, pontua.
“Essas percepções são estereotipadas e, talvez por isso, respinguem até nas produções audiovisuais. Refletindo sobre esse assunto, eu fiquei pensando: ‘Por que não tem uma produção, uma história que fale sobre uma pessoa bissexual vivendo a vida dela normalmente?’. Só em cenas picantes que a gente pode ser representada?”, continua.
Sobre como gostaria de se ver representada na TV e no cinema, Jenniffer narra: “Seria uma narrativa onde ela vive a vida dela normalmente, que num dia ela pode estar aqui conversando, se relacionando com as pessoas, que podem ser do gênero feminino e do gênero masculino, mas sem que isso seja o ponto principal do filme, seria só uma característica como outra qualquer.”
Camilla também sinaliza: “Eu acho que o papel que o cinema e as novelas podem ter é exercitar essa naturalização para que o personagem seja bissexual como uma característica dele e não como um problema que ele precisa resolver”.
Vesic Pis
A roteirista, pesquisadora, produtora e diretora cinematográfica Eric Magda tem destaque em trabalhos que buscam fazer boas representatividades de personagens LGBTQIAP . Ela, que é pansexual e trabalha na produtora cultural Vesic Pis, afirma que as produções de grande alcance ainda não conseguem abordar a não-monossexualidade como as demais sexualidades.
"As obras que eu assistia, pelo menos as obras cearenses, ainda eram muito por um viés cis e hétero, majoritariamente. Se não, seguindo por uma lógica de monossexualidade, ou eram romances gays, ou romances lésbicos", declara. Ela continua: "Raramente a gente tem personagens bissexuais, pansexuais, demissexuais, assexuais. Tanto que é uma lógica de pesquisa e de realização que a gente traz na produtora".
Segundo a artista, ver personagens declarando que são bissexuais em produções é uma estratégia positiva para criar abertura sobre o tema. No entanto, Eric vê outra perspectiva: "A gente ainda vive uma sociedade extremamente bifóbica e panfóbica. Mas eu acredito que, dentro de certos contextos, sim, os personagens deveriam declarar sua sexualidade. Faz parte de quem eu sou, mas, ao mesmo tempo, do outro lado, raramente a gente tem personagens heterossexuais falando que são heterossexuais. Isso cria aquela ideia de que a gente é de fora, de que é diferente, por ter que se assumir e falar sobre isso", completa.
Produções com personagens bissexuais
"Entrevista com o Vampiro", disponível na Prime Video
"LOV3", série brasileira disponível na Prime Video
"A Lenda de Korra",
série animada disponível na Netflix
"Euphoria", série disponível na Max
"Sex Education", série disponível na Netflix
"A Casa da Coruja",
série animada disponível na Disney
"Heartstopper", série disponível na Netflix
"How To Get Away With Murder", série disponível na Netflix
"E Sua Mãe Também", disponível no Youtube