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Escritores lamentam ausências de obras cearenses nos vestibulares
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Escritores lamentam ausências de obras cearenses nos vestibulares

Com a retirada de autores cearenses da lista obrigatória do vestibular da UVA, escritores debatem sobre a valorização da literatura contemporânea do Estado
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Livros de autores cearenses saem da lista de leituras obrigatórias da UVA (imagem ilustrativa). (Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo Livros de autores cearenses saem da lista de leituras obrigatórias da UVA (imagem ilustrativa).

No dia 17 de setembro, a Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA), sediada em Sobral, divulgou uma errata sobre a lista de leituras obrigatórias da prova do vestibular de 2025.1. Três dos cinco títulos indicados anteriormente estavam sendo retirados da lista, todos eles escritos por autores cearenses.

“Pequenas Narrativas”, de Dimas Carvalho, “À Cidade”, de Mailson Furtado e “Quando o amor é de graça!”, de Raymundo Netto saíram das indicações e apenas dois livros, que já integravam a lista, continuaram: “Torto Arado”, do baiano Itamar Vieira Júnior, e ‘Úrsula”, da maranhense Maria Firmina dos Reis.

A retirada gerou reações na comunidade literária do Estado, não em reclamação pelos que continuaram, mas por aqueles que saíram. Mailson Furtado, premiado escritor cearense e um dos que não permaneceram, recebeu a notícia quando estava em Sobral para uma ação em uma escola, que havia sido desmarcada mas aguardava o agendamento de uma nova data com o professor organizador.

“Nessa mensagem de reagendamento, ele (o professor) nos manda essa errata do edital, dizendo que os livros haviam saído da lista e que não tinha mais necessidade do evento”, lembra, definindo que a notícia foi dada de forma “brusca” e por terceiros, sem uma nota prévia.

A decisão da UVA também é apontada como um “retrocesso”, já que esta seria a primeira vez que autores cearenses para além de nomes tradicionais como José de Alencar, Domingos Olímpio e Rachel de Queiroz foram incluídos. “Parecia, em um primeiro momento, um grande respiro. Um sentimento de que a Universidade estava abrindo os olhos para esses autores e essa produção contemporânea, inclusive da região em que a instituição”, pontua.

Em nota enviada ao Vida&Arte por meio da assessoria de comunicação, a Universidade explicou que reconhece a “importância de valorizar autores locais e promover a cultura cearense, no entanto, a adoção dos novos livros gerou desafios significativos aos candidatos, em especial para os alunos de baixa renda, uma vez que o acesso às obras ainda é restrito”.

E justificou: “Desse modo, a errata para adequação do conteúdo programático se fez
necessária, no intuito de garantir a igualdade de oportunidades para todos os candidatos, com a adoção de livros que estão em domínio público”.

Apesar de ressaltar que a Universidade “tem uma ação limitada” sobre questão de acesso aos livros, o produtor de literatura da Sesc de Fortaleza, Geomarque Carneiro, afirma que a decisão “foca no problema, mas não no que o causa”, argumentando que é necessário uma inserção em debates sobre o acesso a livros e bibliotecas.

“Retirar esses livros do edital ou de uma exigência para, pelo menos, o vestibulando conhecer esses autores e, mesmo que por cima, as obras deles, acaba reforçando esse problema. Entramos em um ciclo de ‘não vou cobrar esses autores, porque é difícil, entre aspas, conseguir ler a obra deles’, mas isso causa com que eles continuem sendo inacessíveis”, sustenta.

O momento, em sua opinião, é propício para o fortalecimento e aproximação do público com a literatura cearense, visto que nomes estão se destacando tanto nacionalmente, quanto internacionalmente, como Socorro Acioli e Stênio Gardel. “Pouco se sabe sobre literatura cearense. O máximo que se sabe é que José de Alencar era cearense e, ainda assim, não sei como é a abordagem sobre ele é feita em escolas e para o público geral”, pontua.

E completa: “Precisamos desmistificar essa ideia de dificuldade e possibilitar com que esses estudantes conheçam e saibam que no Ceará se faz literatura — e de qualidade. Que nas periferias e no interior (do Estado) tem muito escritor e que as obras são de muita qualidade, que precisam de fato serem acessadas”.

Além disso, o produtor aponta que um dos meios é um maior investimento em bibliotecas públicas em todo o território do Estado, retirando essa “responsabilidade” apenas da Universidade. “De forma imediata, disponibilizar esses exemplares nas bibliotecas seria um primeiro passo para melhorar essa relação da população com a literatura cearense’.

Mailson Furtado também enxerga que esse debate não se restringe apenas à universidade, mas deve ser ampliado para todo sistema educacional básico, buscando formas desses títulos chegarem até os estudantes que estão se preparando para o vestibular, por exemplo, de “forma mais fluída”.

Nos últimos 45 anos, o autor realizou um circuito em escolas da região — não apenas Sobral, mas também em outras como Senador Sá, Forquilha e Varjota. “Foram experiências incríveis”, ele celebra, e que apenas corroboram com a ideia de que ações podem ser promovidas por órgãos como a Secretaria de Educação do Estado e pelas escolas para acesso a esses livros e seus escritores.

“Já que os autores são da região, estão vivos e em circulação com seus trabalhos, essa é uma das formas: pensar em uma perspectiva um pouco mais orgânica dessa circulação”, elabora, apontando também para a necessidade de maior planejamento, caso essas obras retornem a ser indicadas.

Livro
Livro "O Mundo de Flora", da escritora cearense Angela Gutiérrez

Para ler

Até 2010, a Universidade Federal do Ceará adotava um vestibular próprio e em sua lista obrigatória de leitura, costumava indicar obras para os candidatos lerem e estudarem, entre eles, "Dias & Dias", da Ana Miranda, cuja ilustração de capa feita pela própria autora inspira capa desta edição do Vida&Arte. A lista abaixo traz algumas das obras que a prova costumava indicar. Confira:

"Dias & dias" (2002) - Ana Miranda

"Aves de arribação" (1903) - Antônio Sales

"Cordéis e outros poemas" (2008) - Patativa do Assaré

"O mundo de Flora" (1990) - Ângela Gutiérrez

"Entre a boca da noite e a madrugada" (1971) - Milton Dias

FORTALEZA, CEARÁ, 15-12-2023: Fotos de perfil de Isabel Costa. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)
FORTALEZA, CEARÁ, 15-12-2023: Fotos de perfil de Isabel Costa. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)

Se o Ceará não consome, quem vai consumir?

Tive acesso aos contos do Pedro Salgueiro pela primeira vez no livro "Dos Valores do Inimigo", lá por 2006, quando a Universidade Federal do Ceará mantinha uma lista de obras literárias indicadas para o vestibular. Fiquei encantada. Li e reli os textos inúmeras vezes. A professora de Literatura - de quem não recordo o nome - carregava uma mala cheia de livros: "A casa" (Natércia Campos), "Moça com flor na boca" (Airton Monte), "Aves de Arribação" (Antonio Sales) e por aí vai. Quase duas décadas depois, sou uma leitora assídua de autores cearenses. Inclusive do Pedro Salgueiro - cronista das páginas do caderno
Vida&Arte.

Tal foi a minha surpresa e indignação, portanto, quando recebi a notícia de que três obras cearenses haviam sido excluídas de uma lista de indicações para um vestibular local. É tristeza em várias vertentes. Como escritora, me sinto ultrajada diante de um mercado literário tão predatório. Afinal, se o Ceará não consome os autores cearenses, quem vai?

Como professora, fico possessa de raiva e ouso perguntar: e todo o trabalho desenvolvido nas escolas, o planejamento de aulas, a dedicação dos docentes, as expectativas já criadas, a possibilidade de levar os escritores para conversar com os alunos? É pegar a estruturação pedagógica, amassar e jogar na lata do lixo. Como leitora, acho uma tristeza sem fim - pois os meus hábitos de leitura atuais foram fomentados, justamente, por uma lista de obras indicadas para o vestibular. Cortou-se, portanto, a possibilidade de encontro entre estudantes e escritores cearenses.

Isabel Costa é professora, repórter, escritora e cronista do O POVO

Autores cearenses nas escolas

Quando Tuyra Andrade passou pelo processo de estudar para vestibular, ela recebeu uma lista obrigatória de leitura e, a partir dela, teve contato com alguns autores cearenses, como Antônio Sales e Linhares Filho – este último visitou a escola da cidade em que ela morava. Na época, a escritora não conseguiu ler todos os livros, mas a instituição que frequentou organizava resumos e esquemas para o estudo dos alunos.

Naquele momento, já existia a dificuldade de acesso a livros pelos estudantes, causados, por exemplo, pelo valor elevado do produto. Por isso, para Tuyra, a justificativa da acessibilidade não é suficiente e que medidas poderiam ser adotadas.

A autora argumenta que há uma desvalorização da literatura cearense dentro do sistema educacional, superior e básico, e relembra da época em que cursava Letras na Universidade Federal do Ceará (UFC), contando que a disciplina sobre literatura cearense era da grade optativa e pouco era ofertada.


“A desvalorização já vem desde a formação do professor. Tanto é que quando chega na escola isso é refletido, porque os professores continuam utilizando só as obras indicadas pelo livro didático, o cânone que já vem de outro eixo (e) que se reflete em outras artes, não só na literatura”, arremata.

Para fugir desse padrão, em 2017 a também professora desenvolveu um projeto de literatura e música focado em artistas locais. “Sempre gostei de trabalhar com autores locais e convidava escritores como Talles Azigon e outros autores que circulam em saraus da cidade. Eu tentava tirar a literatura desse pedestal”, explica.

Tuyra destaca que quando os estudantes encontram autores que se aproximam da escrita deles, eles se “identificam e ficam com mais vontade de ler”. “E às vezes é um ponto de partida para eles lerem outras obras”.

Bruno Paulino, também professor do ensino médio e escritor, faz um apontamento similar. Em sua didática, costuma ler “À Cidade”, de Mailson Furtado, e conta que acontece uma identificação imediata “com aquela realidade que ele (o autor) trabalha na obra dele, se tratando de Varjota”.

“Existe uma identificação através da linguagem, (e) da temática que é abordada pelos escritores contemporâneos. É importante que os alunos possam refletir também sobre a realidade que eles estão inseridos e isso só o poeta, o artista, o escritor contemporâneo permite”, sustenta.

Assim como defendido por Mailson e Geomarque no texto principal desta reportagem, Bruno acredita que entidades como Secretarias da Cultura e Educação, assim como as instituições de ensino, devem pensar em como ajudar na circulação dos exemplares destes títulos. Desse modo, facilitaria o acesso desses estudantes às obras literárias.

Pedro Jucá é escritor cearense, autor da obra
Pedro Jucá é escritor cearense, autor da obra "Amanhã Tardará" (2022)

E para os novos?

Durante a realização desta reportagem, um questionamento se fez presente: a retirada dos livros da lista afeta, de alguma forma, autores mais jovens no mercado editorial cearense? Bruno Paulino levanta que “quem escreve, quer ser lido”.

Ele traz essa afirmação para si, recordando que sua obra, “A menina da chuva” (2013), já foi adotada em escolas. “Não tem prazer maior. Mas para além dessa santificação pessoal, tem a questão econômica (que) é significativa, o reconhecimento da obra por uma universidade dizer que aquele conhecimento, questionamentos, que o livro está trazendo são importantes. É motivador para quem escreve”, declara.

Na última quinta-feira, 26, Tuyra Andrade lançou seu primeiro livro, intitulado “A Boca do Peixe”, e, em sua concepção, ações como esta adotada pela UVA, é desencorajador para novos autores. “Já não temos garantia de um público leitor massivo, já não tem tanta iniciativa institucional para apoiar escritores locais, consegue divulgar melhor o livro quem tem dinheiro para investir. Então é desencorajador”, afirma, lembrando que Mailson Furtado já possui reconhecimento e leitores, mas ainda foi afetado por uma decisão como essa.

Falando no autor, ele acredita que isso não será um impacto no futuro da literatura contemporânea cearense, mas que levanta um debate sobre a utilização dessas obras nessas provas, já que autores cearenses estão circulando nacionalmente e, ainda assim, não “conseguem furar um pouco essa bolha da literatura indicada”.

“No próprio Estado, podemos pensar como a literatura cearense pode atingir mais as academias e ver quais outras formas podemos disseminar ela. Eu mesmo sou um grande filho dessa questão do vestibular, conheço a literatura cearense a partir do vestibular da UFC, que do seu catálogo, na época, oito dos dez livros eram cearenses”, arremata.

Voltando a novos autores, Geomarque Carneiro também acredita que a decisão gera desânimo. “Perceber que a sua obra só vai ser valorizada, se ela for valorizada por quem não é cearense. A partir do momento que essa obra for, por exemplo, premiada fora do Ceará e tiver uma ótima recepção, aí o Ceará olha para essa obra com outro olhar”, aponta.

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