"A biografia é, desde sempre, um gênero bastante popular, com muitos aficionados e leitores ávidos". As palavras do jornalista cearense Lira Neto, um dos principais biógrafos em atividade no Brasil, ecoam a importância assumida pelo gênero biográfico. Surgida enquanto gênero textual ainda na Grécia e na Roma Antiga, a biografia segue relevante.
Caracterizada por narrar a história de vida de uma pessoa, a biografia pode dar visibilidade a personalidades notórias ou anônimas, com critérios distintos para serem contempladas e etapas diversas para ser construída.
No Ceará, foi idealizada no início dos anos 2000 a coleção "Terra Bárbara", com perfis biográficos de personagens cearenses que se destacaram em várias áreas. Publicada pelas Edições Demócrito Rocha (EDR), a coleção reuniu histórias de nomes como Fausto Nilo, Rachel de Queiroz, Bárbara de Alencar e Adolfo Caminha.
Em celebração aos 25 anos do projeto, surge a Coleção Nova Terra Bárbara, com novos nomes biografados. Os primeiros cinco títulos serão lançados na próxima quarta-feira, 16, no Espaço O POVO de Cultura & Arte. As obras são os perfis biográficos de Adísia Sá, Narcélio Limaverde, Henriqueta Galeno, Emília Freitas e Gerardo Mello Mourão.
A Coleção Nova Terra Bárbara tem organização e coordenação de Raymundo Netto, jornalista, escritor, colunista do O POVO, gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha (FDR). Como afirma, o projeto surgiu com o propósito de ser uma edição comemorativa dos 25 anos na primeira coleção.
Assim, a iniciativa dá continuidade ao objetivo da coleção: "reconhecer, valorizar e promover a diversidade cultural" a partir da democratização do acesso ao conhecimento e reconhecimento de personalidades que deixaram seus legados no Ceará em diversas áreas, como literatura, política, artes visuais, música, ciência e economia.
Além de novos nomes, a coleção teve mudança no projeto gráfico, mas com tamanho ainda de bolso e inserção de subtítulos à obra, "ampliando o apelo e atrativo ao(à) biografado(a)". A ilustração da capa é de autoria de Carlus Campos e cada exemplar é acompanhado de um postal que também pode ser usado como marcador de página.
Há um número equitativo entre homens e mulheres contemplados nas biografias, mas há mais biógrafos que biógrafos - sete autoras e três autores, no caso. Raymundo Netto organiza a coleção, mas também participa dela, pois escreveu o perfil do escritor cearense Juvenal Galeno.
Dividindo papéis como editor e autor, ele elenca alguns desafios das tarefas, como o trabalho "quase sempre ingrato" de precisar se colocar "na condição de juiz" ao tomar decisões sobre as obras e as características inerentes à escrita da biografia.
"Para escrever biografias faz-se mister saber que elas serão sempre limitadas por fatores vários. No caso da Coleção Nova Terra Bárbara, não temos a pretensão da plenitude, até porque nos propomos apenas a desenvolver perfis biográficos, ou seja, queremos, sim, atrair nossos(as) leitores(as) para conhecer esses nomes, saber a respeito daquele(a) personagem, sentir desejo de ler suas obras, conhecer seus legados, compreender o seu tempo e espaço", avalia.
Ele acrescenta: "Naturalmente, temos ciência de que, conforme novas evidências, como registros e documentos que podem aflorar de algum lugar inesperado, alguns pontos da história dessas personagens poderão ser elucidados e/ou acrescidos, o que nos faz ter a feliz certeza de que nenhuma biografia é definitiva!".
No leque da nova coleção, algumas peculiaridades. Há, por exemplo, a história de Gerardo Mello Mourão, cearense que chegou a ser indicado ao Prêmio Nobel de Literatura em 1979 e vencedor do Prêmio Jabuti em 1999. O perfil é escrito por Rodrigo Marques "em uma biografia bem ao estilo romance".
Alba Valdez, primeira mulher a ingressar na Academia Cearense de Letras e fundadora da Liga Feminista Cearense, também é contemplada a partir de texto de Keyle Sâmara Ferreira de Souza. Outro destaque é a jornalista Adísia Sá, única biografada da nova coleção que continua viva.
Escrever sobre pessoas vivas pode ser uma armadilha ou privilégio - por um lado, pode ser descoberto algo grave que "acabe com aquela imagem admirável"; por outro, é "a oportunidade de ter a principal testemunha dos fatos narrados". A avaliação é da jornalista Luiza Helena Amorim, autora do perfil biográfico de Adísia Sá.
Adísia já teve uma biografia publicada pela própria autora. Desta vez, porém, há um novo olhar sobre a sua história. Ao escrever a primeira versão há 20 anos, Luiza Helena teve o desafio de sistematizar as fontes, pois as informações estavam soltas em recortes de jornal, livros que ela publicou e documentos.
Na época, ainda era estudante de jornalismo e não havia uma biografia escrita sobre ela, então recorreu a entrevistas com a própria biografada. Permitidas as pesquisas sobre sua vida, foram feitas também leituras sobre vários volumes encadernados com artigos de jornal, analisando várias fontes diferentes.
Agora, ela confere o olhar de historiadora e outra relação no tratamento dessas fontes. Não houve, porém, entrevistas com Adísia Sá. O conteúdo foi montado a partir dos conteúdos previamente coletados e de novas perspectivas, como outros livros e jornais.
Luiza, que também escreveu biografia sobre a ambientalista Dolores Feitosa, deseja escrever mais biografias "de mulheres cearenses que se destacaram e cujas histórias ainda são desconhecidas ou sabem-se poucas informações".
"É preciso tirar o pó dos arquivos e apresentar à sociedade esses protagonismos silenciados. Ainda há muitas lacunas na história de mulheres que tiveram um papel fundamental na construção do Ceará. Até afirmo que sou uma militante contra o memoricídio imposto às mulheres durante tantos séculos. Hoje pesquiso sobre mulheres artistas e ministro cursos sobre o assunto, incentivando que outros pesquisadores se interessem sobre o tema", enfatiza.
Uma das grandes novidades da Coleção é o perfil de Henriqueta Galeno, "grande promotora da literatura e da cultura cearense na criação e na resistência na manutenção da Casa de Juvenal Galeno", nas palavras de Raymundo Netto. Para a autora da sua biografia, Natércia Rocha, é uma "das maiores intelectuais de seu tempo".
Ela também é a autora do primeiro perfil biográfico sobre o radialista Narcélio Limaverde. Em janeiro de 2025 serão completados três anos de sua morte. Para escrever a biografia, Natércia recorreu a fontes primárias, como informações de sua esposa, colegas de trabalho e seu irmão. Além disso, leu entrevistas dadas para estudantes de Comunicação.
"O desafio foi sair de dentro da bolha de admiração e amor pelo biografado e focar na história real, sem sentimentalidades", pontua.
Com o subtítulo "A Rainha Sem Rosto", de autoria de Alcilene Cavalcante, a escritora cearense Emília Freitas é mais uma homenageada na coleção. Ela escreveu o livro "A Rainha do Ignoto", primeiro romance fantástico brasileiro.
Ao desenvolver o perfil biográfico de Emília, Alcilene considerou "a incipiência de estudos sobre ela", seu pioneirismo ao escrever literatura fantástica, o seu engajamento político abolicionista e republicano e sua filiação a "certa linhagem feminista" ao reclamar direitos das mulheres, denunciando a violência que sofriam.
Para Alcilene, o gênero e a variedade temática da sua literatura "indicavam se tratar de uma escritora que, atualmente, poderíamos denominar uma intelectual pública". "Sua literatura oferecia um potencial imaginativo admirável, uma inserção literária pioneira e politicamente contundente", afirma.
"Escrever sobre mulheres na História sempre é desafiador, já que o espaço público, por conseguinte, os arquivos oficiais são até hoje reservados aos homens brancos. Então, requer tempo, financiamento e compromisso para construir arquivos e reunir dados sobre essas trajetórias de vida", analisa.
"A boa biografia é necessariamente transgressiva"
Entre tantas dimensões assumidas pela biografia, é possível afirmar que ela também pode ocupar um espaço importante enquanto registro histórico. No campo da historiografia, porém, ela já foi considerada por muito tempo "um gênero menor, quase espúrio", como afirma o escritor e jornalista cearense Lira Neto.
Autor de biografias sobre personalidades como Getúlio Vargas, Maysa e Padre Cícero, ele considera que o gênero biográfico tem sido visto "de forma menos preconceituosa e simplista". Ele cita "historiadores de ponta" que também são "grandes biógrafos", como Boris Fausto e Lilia Schwarcz.
Há 20 anos, Lira Neto se dedica à biografia. O autor de "A arte da biografia: Como escrever histórias de vida" dá preferência a "personagens que não tenham levado existências em linha reta": "O biografado precisa ser um indivíduo contraditório, com defeitos e qualidade, virtudes e vícios, e que tenha vivido fracassos e êxitos, vitórias e derrotas".
Em sua análise, o biógrafo precisa saber que a biografia não deve "beatificar" ou "demonizar" o personagem. Questionado se a biografia também pode ser considerada um "instrumento político" para exaltar personalidades, o escritor indica que isso não é tarefa do biógrafo. "Isso seria cair na narrativa chapa-branca, na louvação, na hagiografia. A boa biografia é necessariamente transgressiva", considera.
Responsável pela idealização da Coleção Terra Bárbara quando foi coordenador das Edições Demócrito Rocha (EDR), Lira Neto lembra como o projeto reuniu de "autores mais tarimbados" (como Gilmar de Carvalho e Régis Lopes) a "então jovens estreantes" (como Socorro Acioli e Cláudia Albuquerque).
Para Lira, o modelo passa por modernização: "Há hoje a exigência de maior rigor metodológico em relação à pesquisa".
O poder e a "dança" da biografia
Analisar o significado de "biografia" em sua essência (ou seja, a "escrita da vida" sobre alguém) permite compreender que, a partir do momento que se fala sobre uma pessoa, é dada visibilidade a ela. A questão, porém, é se será posta em evidência uma personalidade já notória ou um indivíduo que ainda não teve maior alcance.
Vale ressaltar, claro, que a resposta a isso não é definidor se uma pessoa "merece" ou não ter uma biografia. Esse ponto é importante, porém, para compreender os possíveis contextos ligados a esse tipo de registro - de estilos de escrita a critérios de escolhas.
"Não são apenas os chamados 'grandes personagens da história' que merecem ser biografados. Há cada vez mais interesse em relação aos personagens anônimos, que podem revelar aspectos relevantes de uma determinada época ou de determinado grupo social", afirma o escritor Lira Neto.
Nesse sentido, ele acrescenta que ao biografar um indivíduo "estamos biografando também toda uma época e o respectivo contexto no qual o biografado se movimentou": "(O gênero biográfico) É uma área de fronteira, que pede empréstimos da metodologia historiográfica, da investigação jornalística e dos recursos estilísticos da literatura. Além de produzir informação, deve buscar também o prazer do texto".
Não basta, portanto, "acumular" informações apenas: é preciso "colocá-las a serviço de uma dança, de uma coreografia, devolver a vida àquela história", como ressalta o escritor e jornalista paraibano Jotabê Medeiros, autor de biografias de nomes como Raul Seixas, Roberto Carlos e Belchior.
"Acho que todo mundo é biografável, não existe uma personalidade particularmente 'apta' (a ser biografada). Eu escrevi uma biografia do meu próprio pai, que é um homem comum", relata.
Ao escolher uma personalidade para biografar, ele costuma privilegiar como critério principal a afinidade com o personagem em questão, implicando no esboço "de uma imagem desse personagem que você mesmo considere satisfatória". O outro critério "é quase como um juramento": o autor precisa estar disposto a ir fundo na investigação, ainda que o coloque contra o que ele anteriormente pensava.
Em questão de visibilidade, a biografia também pode ser considerada um "instrumento político". Jotabê cita autobiografias como "Mein Kampf", de Adolf Hitler, um "caso exemplar de autopromoção". Quanto a biografias, há situações em que artistas pagam escritores-fantasmas (profissionais que não recebem créditos de autoria pelos seus textos) "para dar sua versão, sem examinar o contraditório, da sua própria trajetória".
"Em geral, grandes empresários ou banqueiros usam esse recurso para lustrar o próprio prestígio, fazendo tiragens de livros caros para presentear seus clientes — não têm a preocupação em fazer com que sejam livros autossustentáveis", pontua.
Luiza Helena, jornalista e autora do perfil biográfico sobre Adísia Sá, contribui para o debate ao afirmar que "a própria escolha de quem biografar diz respeito" à biografia enquanto ferramenta de visibilidade. "É como se o biógrafo, através de sua escrita, tivesse o poder de decidir quem merece sobreviver para a posteridade, materializado na forma de livro", destaca.
Para a biógrafa, o "ordinário não pode ser desprezado porque há um extraordinário que pode gerar muito dinheiro": "Veja o caso da Carolina de Jesus! Todos temos histórias que merecem ser contadas de alguma forma. Já viemos ao mundo gerando registros e morremos sendo documentados".
Natércia Rocha, escritora dos perfis biográficos de Narcélio Limaverde e Henriqueta Galeno, enfatiza que a vida de muitas pessoas "anônimas e/ou simples dariam um belo relato" e concorda que um perfil biográfico aumenta a visibilidade de um personagem.
Mas, afinal, como uma biografia pode ajudar a elevar o conhecimento sobre uma figura desconhecida? De acordo com a autora, é "muito relativo" dizer que uma figura é conhecida ou não atualmente, diante de uma sociedade digital em que é possível trafegar por muitos nichos.
Ela cita Henriqueta Galeno, que é "muito conhecida por quem é ligado à cultura do Ceará". Entretanto, pondera que "sua imagem é popularizada como a filha solteira de Juvenal Galeno, que foi a secretária do pai por muitos anos".
"Agora, com seu perfil biográfico publicado pela Coleção Nova Terra Bárbara, as pessoas vão saber que ela foi uma mulher à frente do seu tempo, uma feminista que lutou por direitos iguais entre homens e mulheres. Vai expandir o conhecimento dessa figura do Ceará e do Brasil, porque a Casa de Juvenal Galeno continua sendo um ponto turístico importante, tombado pelo patrimônio histórico", pontua.
Jotabê Medeiros analisa como positivo o cenário da biografia no Brasil: "Acredito que há uma euforia até no setor. Muitos novos livros sendo escritos, muitas vidas sendo esmiuçadas. Não é algo ainda sedimentado, é uma fatia pequena em relação a outros gêneros literários, mas tem uma vantagem: pode engajar pequenos contingentes de leitores, pode atingir guetos, mobilizar grupos de fãs, e isso é um bom cenário".
Lançamentos Nova Terra Bárbara
Adísia Sá - o bom combate de uma jornalista (Luiza Helena Amorim)*
Narcélio Limaverde - o homem por trás do rádio (Natercia Rocha)*
Henriqueta Galeno - a vanguarda feminista e intelectual (Natercia Rocha)*
Emília Freitas - a rainha sem rosto (Alcilene Cavalcante)*
Gerardo Mello Mourão - a invenção do poeta (Rodrigo Marques)*
Alba Valdez - uma transgressora em seu tempo (Keyle Sâmara Ferreira de Souza)**
Francisco José de Abreu Matos - o criador das Farmácias Vivas (Mary Anne Bandeira)**
Juvenal Galeno - a voz popular na poesia (Raymundo Netto)**
José Alcides Pinto - um iluminado nas trevas (Carlos Vazconcelos)**
Suzana de Alencar Guimarães - a modernista esquecida (Carmem Débora Barbosa)*
*Livros lançados no dia 16 de outubro
**Livros lançados até novembro
Lançamento Coleção Nova Terra Bárbara
Quando: quarta-feira, 16, às 19 horas
Onde: Espaço O POVO de Cultura & Arte (av. Aguanambi, 282 - Joaquim Távora)