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Manifesto por uma cátedra para Gilmar de Carvalho na universidade
Vida & Arte

Manifesto por uma cátedra para Gilmar de Carvalho na universidade

Cronista do Vida&Arte, jornalista Izabel Gurgel convida instituições de ensino superior à criação de homenagem ao professor cearense
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Exposição
Foto: Micaela Menezes/divulgação Exposição "Gilmar Presente" integra Galeria Leonilson, situada na Escola Porto Iracema das Artes

Aurora, Cariri. A caminho da prometida visita a Zezé, amigo vizinho do sítio Cabôco onde vivem Leonor e Germano. Ela cuidando do fazer e ele da venda e entrega do queijo de manteiga, há mais de quarenta anos no cotidiano do casal. Açude cheio, abril fresco, a estação das chuvas havia sido um diário bonito pra chover que, no Ceará, faz parte do nosso repertório de afirmação da vida. Zezé veio mostrar o melhor caminho, veredas tomadas pelas águas.

"O dia foi um tirinete, Zezé", disse Dona Leonor como saudação e, um resumo da jornada cheia, já explicando porque só agora íamos ver a casa da família depois da reforma e jardim terreiro quintal com tudo o que vive no auge do vivíssimo. É preciso ver a caatinga em abundância, reconhecê-la em seu esplendor. As atas no pé cintilavam - lembrei das bolas de árvore de Natal, essa sagração do nascimento -; o mamoeiro carregado; tudo que era semente realizava o destino para o qual havia nascido. Mais cedo, pela manhã, café à mesa com Leonor e Germano, Zezé nos contou que ia para a segunda rabeca, o que a vida toda quis fazer e, filho de mestre rabequeiro, cismava com a feitura. O não fazer era caçando modo próprio de se entregar ao ofício.

O pai, Antônio Pinto, seo Antônio rabequeiro, Seu Antônio das rabecas - de tocar e de construir o instrumento, músico e lutier - é um dos cento e cinco primeiros rabequeiros que Gilmar de Carvalho (1949-2021) encontra, e escuta um a um, mais de uma vez, guardando-os no melhor dos cofres, o livro, como disse a escritora Ana Miranda em texto aqui no jornal O POVO sobre vida e obra do artista, professor, pesquisador, vítima da pandemia de Covid-19 quando já havia vacina para combater o vírus. Encontrar Zezé trouxe à mesa o viajante, o escritor e o cofre "Rabecas do Ceará", publicado em 2006 em Fortaleza pela Expressão Gráfica e Editora, com fotos de Francisco Sousa.

Leio Gilmar: "Do diluviano fevereiro de 2004 ao tórrido novembro de 2006, perseguimos rabequeiros, no oco do sertão, subimos serras, percorrendo estradas carroçáveis, trilhas e, até mesmo, rodovias asfaltadas. A aventura ultrapassou a casa dos cem tocadores de rabeca, em mais de quarenta municípios cearenses." Em 2014, a pesquisa ganharia o Prêmio Rodrigo Melo Franco, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan. Em 2018, estaria no Museu do Ceará em formato de exposição. "Sertão das Rabecas" apresentou, em grande formato, a bem dizer os olhos dela nos nossos, Ana Soares de Sá Oliveira, de Baixio dos Gaviões, Umari, no Cariri cearense, até então a única mulher reconhecida como rabequeira. Uma edição da mostra chegou ao Teatro da Ribeira dos Icós, em Icó, via festival Icozeiro.

Escutei "O dia foi um tirinete, Zezé" com o acento dado aos 'di' e 'ti' no sul do Ceará, a lembrar que as variações nos alargam, e não só em torno do idioma. Peguei-me a rir. Leitora de Gilmar, eu estava dentro de um livro não só pelas aventuras da imaginação, mas pela ventura que bons livros têm de serem todos, cada qual a seu modo, a imparável vida tornada possível, passível de ser apreciada e compartida. Escrevendo para você ler hoje, tive vontade de ouvir o Zezé. Enviei mensagem escrita. Ele respondeu no zap com áudio: "Estou na sexta rabeca". Um futuro que Gilmar anteviu e conspirou para que existisse. Tomara tenhamos você, criatura leitora, no coro-conspiração por uma Cátedra Gilmar de Carvalho. Um tirinete? É outro livro dele, "Tirinete - Rabecas da Tradição", Expressão Gráfica e Editora, 2018.

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