Logo O POVO+
O que te vem à cabeça quando eu falo Travesti?
Vida & Arte

O que te vem à cabeça quando eu falo Travesti?

A partir de intercâmbio na Espanha, Pedra Silva repensa a memória de travestis brasileiras
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Projeto
Foto: Sara Rodriguez/divulgação Projeto "Intercâmbios performáticos: rituais e magias de criações cuir", com Graham Bell Tornado e Pedra Silva

Esta pergunta, que dá título a esse texto, vem alimentando a minha poética artístico-política nos últimos anos e também foi de fundamental importância para a residência que realizei entre os dias 10 e 18 de setembro na cidade de Valência, na Espanha, juntamente com o coletivo La Erreria - Graham Bell Tornado e Anna Maria Staiano - e a artista Bruna Kury.

O projeto "Intercâmbios performáticos: rituais e magias de criações cuir" aconteceu por meio do edital Territórios de Criação, uma iniciativa do Governo do Ceará em parceria com o Governo Federal através do Ministério da Cultura (MinC) e da Lei Paulo Gustavo, com produção e realização da Mercúrio - Gestão, Produção e Ações Colaborativas e Casa das POC - Produções Criativas.

Em maio de 2024, os curadores Eduardo Bruno e Waldírio Castro, da Plataforma Imaginários, apresentaram meu trabalho, logo após a performance "Defumação para afastar o Alzheimer Colonial", realizada na Universidade de Zaragoza (ES), para a artista Graham Bell. Foi a partir desse encontro inicial que voltei em setembro, para Espanha, dessa vez com o interesse em aprofundar minhas investigações sobre memória e vida travesti. Esta ação contribui para a continuação de minha pesquisa em curso, desde 2023, no PRIS - Hub Porto Dragão.

Historicamente, pessoas transgêneras ocupavam cargos importantes dentro das sociedades pré-coloniais. Basta uma investigação mais qualificada para se notar a presença trans no mundo desde a criação das primeiras civilizações.

Somos muitas(os) e estamos aqui há muito tempo. No México, em Oaxaca, temos as Muxes; na Índia, as Hijras; nos Estados Unidos da América na etnia Navajo, as Berdaches, na Mesopotâmia tínhamos as Galas. Identidades ancestrais que estão presentes há muitos anos, assim como afirma a professora da UFMG Megg Rayara no texto "Divas, divinas e poderosas: fragmentos discursivos a respeito da presença de travestis e mulheres transexuais no campo do sagrado".

Possuindo este embasamento teórico e crendo na minha identidade como uma herança ancestral, cruzei o oceano na busca de outras tecnologias no campo da arte que possibilitem o reflorestamento do imaginário travesti que possuímos no Brasil. Cruzei o oceano e volto como um ato de vingança a todas as minhas irmãs racializadas que tiveram que fugir para terras estrangeiras para permanecer vivas. Fui à Espanha fundamentada no que Tatiana Nascimento outrora conceituou como missão "cuirlombista".

Quando estive na Espanha pela primeira vez, fiquei impactada ao ser apresentada por Eduardo Bruno e Waldírio Castro a placa de Margarida Bòrras, primeiro caso documentado de tortura e morte em Valência de uma pessoa transgênera. Conforme documentado em um diário da época escrito por Melcior Miralles, na segunda-feira, 28 de julho de 1460, na Praça do Mercado de Valência.

Ver aquela placa era a confirmação de que o memoricídio a corpos travestis falhou. Se Margarida foi assassinada no século XV, isso quer dizer, que já estamos aqui há muito tempo e se estou de frente para esta placa no século XXI é que, mesmo morta, Bòrras permanece viva através da minha vida. Mesmo sendo de outro continente e permanecendo, provavelmente, a outro grupo étnico, eu e Margarida temos muito em comum, burlamos a cisgeneridade.

Precisamos transformar o jugo em júbilo. A afirmação da artista e pastora Ventura Profana evoca a transformação da ferida em glória. Assim, venho disputando a presença travesti dentro do campo sagrado. Plantando outras imagens que fortaleçam a vida, a transmutação como um elemento da natureza e a busca de ritualidades que desmanchem a braga colonial.

De frente para esta placa novamente e junto aos curadores e artistas locais que me recebiam para a residência, lembrei de uma trilogia de aparições urbanas que ainda estava em aberto.

Comecei em 2023 uma investigação nomeada "Desmembrando a Seiva", onde queria criar três performances urbanas e duas das três intervenções já haviam nascido. Foi com isso que percebi que a obra pedia para nascer naquele momento e foi, juntamente com a colaboração de Graham Bell, que nasceu Exu Mulher. Nasce assim, uma performance ritual que reestrutura esta presença homenageada por Margarida Bòrras. Quero não só lembrar de meus irmãos e irmãs trans a partir da morte, quero propor um acordo de vida.

Realizar esta ação num território completamente distinto de onde nasci era diferente, mas não impossível, já que a rua era o maior mediador entre eu e o público. Ser esse corpo legião junto das minhas foi minha forma de burlar o imaginário sobre o que vem à cabeça quando pensamos na palavra travesti.

Nessa residência éramos muitas, no campo do visível e do invisível. Nessa performance, fomos muitas, no campo do visível e do invisível. Enquanto travestis somos muitas, no campo do visível e do invisível. Seguiremos e, apesar da violência histórica, fazemos nossas histórias brotarem e frutificarem mesmo em terrenos tão áridos pois cremos no poder de uma semente possuir uma floresta inteira.

*Pedra Silva é artista e educadora

O que você achou desse conteúdo?