Vencedor do Prêmio Todavia de Não-Ficção de 2021, o jornalista e escritor cearense André Ítalo Rocha lança neste sábado, 26, em Fortaleza, "A bancada da bíblia", no qual recupera o ponto de partida da atuação no cenário nacional do segmento pentecostal, remontando ao fim dos anos de 1980.
Da Constituinte às eleições presidenciais, passando pelos governos de Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva (ambos do PT), o autor retraça o fio que conduz o percurso do bloco mais influente entre grupos religiosos no País.
Em conversa com O POVO, Rocha antecipa as principais teses do livro, detendo-se naqueles elementos a partir dos quais os evangélicos se tornaram uma força política tão expressiva quanto mostram ser hoje no Brasil.
De acordo com ele, porém, esse campo está em disputa, tal como revelou o confronto em 2024 entre o pastor Silas Malafaia, aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro, e o então candidato Pablo Marçal, que concorreu à Prefeitura de São Paulo pelo nanico PRTB e quase chegou ao 2º turno.
Para o jornalista, o episódio escancara "principalmente que pastores como Silas Malafaia não conseguem controlar totalmente o voto do fiel", que se dividiu entre Ricardo Nunes (do MDB, mas apoiado por Bolsonaro) e o empresário.
"Pablo Marçal", continua Rocha, "mesmo não sendo ligado a nenhuma igreja específica, se apresenta como cristão e tem uma postura de 'outsider' de direita, algo que costuma atrair o voto evangélico, como ocorreu com Bolsonaro".
Daí que esse voto seja pleiteado por diferentes atores no campo eleitoral, dentro e fora das igrejas, como se viu agora em São Paulo, mas também em Fortaleza, onde um postulante ligado a essa corrente é um dos nomes que avançaram ao 2º turno.
O POVO - O livro "A bancada da bíblia" (Todavia) radiografa a formação da bancada evangélica no País. Como esse processo foi se estruturando?
André Ítalo Rocha - O envolvimento dos evangélicos na política nasce do medo de ser perseguido. No século XX, como eram minoria em um país de maioria católica, sentiam-se escanteados, tratados como membros de seitas, e temiam o tempo todo que o estado, sob influência da Igreja Católica, iria retirar sua liberdade religiosa. Até os anos 1980, porém, eram raros os casos de evangélicos que se aventuravam na política, porque havia um entendimento, da maioria das lideranças evangélicas, de que política era coisa do Diabo, algo mundano demais para quem pretendia seguir espiritualizado. O marco para mudar isso foi a Constituinte. As igrejas temiam que a Igreja Católica voltasse a ser definida como religião oficial do país. Além disso, não queriam que pautas progressivas demais, como o aborto, avançassem.
OP - Há muitos matizes sob a mesma denominação de evangélico, que é mais diverso do que parece. Quais correntes se encontram aí?
André - Os evangélicos são basicamente divididos em dois grandes grupos: os protestantes históricos, das igrejas criadas a partir da Reforma Protestante (luteranos, presbiterianos e metodistas, para dar alguns exemplos), e os pentecostais, que surgiram nos Estados Unidos praticando cultos mais fervorosos e com a crença no poder de Deus para curar doenças e expulsar demônios, e vieram para o Brasil no início do século XX. No Brasil, alguns exemplos são a Assembleia de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus. As igrejas pentecostais são as que mais engajam politicamente, exatamente porque são as que mais se sentem perseguidas, quase como uma estratégia de defesa, e também porque são nelas que os pastores costumam ter mais influência sobre os votos dos fiéis. Mas há algumas igrejas que ainda evitam a política, como a Congregação Cristã e a Deus é Amor, ambas pentecostais.
OP – Houve influência evangélica já na Constituinte. Como isso se deu?
André – Foram 32 parlamentares eleitos para a Constituinte. A igreja com maior representação foi a Assembleia de Deus, a única que se mobilizou nacionalmente para tentar eleger um deputado em cada estado, embora só tenha conseguido eleger 13 naquele momento. Foi na Constituinte que tivemos o primeiro esboço de bancada evangélica. Eles não eram tão organizados quanto hoje, mas conseguiram algumas vitórias. A principal estratégia foi tentar emplacar o maior número possível de evangélicos nas comissões temáticas que tinham relação com pautas de costumes e liberdade religiosa. Eles conseguiram, por exemplo, evitar que a Constituição incluísse que os brasileiros não poderiam ser discriminados por orientação sexual. E conseguiram também incluir no texto que a Constituição foi promulgada "sob a proteção de Deus." Por outro lado, ficaram marcados negativamente por terem negociado concessões de rádio com o Sarney em troca de votos para apoiar o mandato de cinco anos para o presidente. Ali os evangélicos mostraram que, além de ideológicos, eram também pragmáticos.
OP - Em que momento se consolidou uma bancada evangélica no Brasil?
André - O primeiro esboço de bancada foi na Constituinte, mas só em 2003 é que foi criada oficialmente a Frente Parlamentar Evangélica. Foi ali que a atuação deles ficou um pouco mais organizada. O grande salto no número de deputados se deu em 2010, com a chegada de estreantes como o pastor Marco Feliciano. Não por acaso, foi no governo Dilma, eleito em 2010, que a Universal conseguiu emplacar dois ministros. E foi também no governo Dilma que Feliciano se tornou nacionalmente conhecido fora do meio evangélico, ao ganhar as manchetes virando o presidente da Comissão de Direitos Humanos, historicamente liderada por parlamentares de esquerda. Hoje, já são mais de 90 deputados evangélicos em Brasília, e é importante não confundir com o número de membros da FPE, pois muitos deputados não evangélicos são signatários da frente, apenas para atingir o número mínimo necessário de assinaturas para mantê-la funcionando.
OP - Candidatos evangélicos disputam eleições em todo o Brasil, a exemplo de Fortaleza. Por que esse grupo se tornou uma força tão influente?
André - Os evangélicos são hoje o único segmento religioso que se mobiliza de fato politicamente. Como eles se sentiam perseguidos, mas foram crescendo na população, perceberam que tinham força eleitoral para eleger deputados e com isso fazer frente a tudo o que combatem, na esfera de costumes e na esfera institucional, buscando isenções fiscais e liberdade de culto. Já a Igreja Católica, mesmo sendo também grande em número de fiéis, nunca precisou se provar politicamente, porque chegou ao Brasil junto dos colonizadores portugueses, como igreja oficial. Participava da política, mas não como resistência. Os evangélicos, mesmo sendo já uma força protagonista, até hoje se sentem como rebeldes na política, ocupando um espaço que antes não lhes pertencia, como se tivessem se tornado as estrelas de uma festa para qual não foram convidados. E assim eles vão crescendo, reforçando esse discurso de perseguição nas igrejas, nos cultos, para engajar o fiel a votar em candidaturas evangélicas. O sistema político brasileiro também favorece. O voto proporcional favorece candidaturas de classe, como os evangélicos, e o sistema multipartidário faz com que bancadas temáticas sejam mais fortes que muitos partidos. Hoje, já chegam a quase 20% da Câmara dos Deputados, e estão se tornando também competitivos politicamente em disputas majoritárias, como aconteceu com Crivella no Rio e agora com André Fernandes em Fortaleza.
OP – Recentemente vimos um conflito aberto entre Silas Malafaia e Pablo Marçal em torno do eleitorado evangélico. O que isso revela?
André – Revela principalmente que pastores como Silas Malafaia não conseguem controlar totalmente o voto do fiel. Pablo Marçal, mesmo não sendo ligado a nenhuma igreja específica, se apresenta como cristão e tem uma postura de “outsider” de direita, algo que costuma atrair o voto evangélico, como ocorreu com Bolsonaro. O evangélico se sente representado pelo político que "fala o que pensa", que bate de frente com a esquerda progressista, pois o evangélico se sente oprimido pela elite intelectual de esquerda que o trata como ignorante e atrasado. Ocorre que o surgimento de Marçal ameaça Bolsonaro, aliado de Malafaia, que passou a atacar Marçal para tentar enfraquecê-lo. É possível que Marçal tenha perdido alguns votos por influência de Malafaia, mas ainda assim ele teve uma votação expressiva entre os evangélicos de São Paulo.
Lançamento "A bancada da bíblia"