Foi aos 8 anos que Lucas Vieira teve o primeiro contato com uma sala de cinema. Para ele, aquela foi uma experiência que “mudou completamente” a sua vida. Em um “quase encontro simbiótico”, sentiu como se houvesse, enfim, preenchido uma parte que faltava - mesmo com a pouca idade até então.
Quatro anos depois, Lucas perdeu sua visão “por causas desconhecidas”. Ele pensou que nunca mais poderia assistir a um filme novamente. Entrou em uma reabilitação em braille e então conheceu o universo da audiodescrição: “Foi uma luz no fim do túnel para mim”, reflete.
Entretanto, sentia que não era o suficiente para pessoas com deficiência visual serem integradas ao contexto das artes audiovisuais. “Era necessário que esse recurso se tornasse uma política pública”, afirma. Hoje, o estudante de jornalismo consegue assistir a filmes a partir do avanço de recursos de acessibilidade para as pessoas com deficiência.
Ainda assim, são diversos os desafios enfrentados para alcançar a cultura e a arte de forma plena. Mesmo com a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que visa promover e assegurar o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, o tema da acessibilidade segue fundamental.
Entre seus diversos tipos, como acessibilidade arquitetônica, digital, atitudinal e de comunicação, saltam os holofotes para a acessibilidade cultural. Os desafios incluem lacunas de infraestrutura adequada, programações com poucos recursos de acessibilidade e mesmo falta de preparo dos profissionais.
Nas políticas culturais de acessibilidade, entretanto, é preciso ir muito além de audiodescrição técnica sobre pinturas. Apesar de importante, é necessário abordar como a acessibilidade na arte é cada vez mais discutida para envolver pessoas com deficiência em sua totalidade de poéticas.
Falar sobre acessibilidade cultural é também abordar contextos de desafios, mas há percepção de avanço nas discussões sobre o tema, especialmente no Ceará. A análise é de Thamyle Vieira, mulher cega, coordenadora da Célula de Acessibilidade da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) e consultora em Acessibilidade Cultural.
“Participo de grupos de estudos sobre deficiência e acho que no Ceará temos avançado bastante. Penso que talvez isso se dê mesmo pela participação e pelo protagonismo de pessoas com deficiência pensando e propondo políticas. Há pouco tempo o que acontecia era apenas pessoas com deficiência pensando arte e cultura. Quando conseguimos colocar nossas percepções a partir dos nossos corpos e das nossas existências, conseguimos mover toda essa lógica normativa”, considera.
O avanço se dá também em conceitos. Segundo Thamyle Vieira, há a compreensão atualmente das pessoas com deficiência de suas condições enquanto corpos políticos. Ela não hesita em dizer: “Nossa deficiência é uma identidade. Isso nos tira daquele lugar de passividade de um corpo percebido socialmente como incompleto, como um corpo que é menos capaz. Ocupando esses espaços conseguimos trazer nossas vivências. Apenas nós, que temos deficiência, podemos falar o que funciona ou não sobre a acessibilidade”.
Enquanto coordenadora da Célula de Acessibilidade, Thamyle propõe ações de formação para a rede de equipamentos da Secult e pensa práticas estruturantes para a aplicação da política de acessibilidade nos editais de fomento da pasta. Durante dez anos, trabalhou no setor de Leitura Acessível da Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece), responsável por impressões em braille e adaptações de materiais.
Para a coordenadora, o principal desafio relacionado à acessibilidade ainda é o “capacitismo”, ou seja, a percepção de que pessoas com deficiência são menos capazes e precisam “ser restituídos” e “normalizados”. Segundo Thamyle, a acessibilidade na cultura hoje é discutida a partir da dimensão do acesso e não mais da “inclusão”, pois essa palavra insinua que as pessoas com deficiência precisam de “permissão das pessoas normativas” para ocupar espaços.
Entre as soluções mais conhecidas de acessibilidade estão a audiodescrição e a interpretação em Libras. Mas, afinal, elas são suficientes? Segundo Thamyle, muitas vezes não, pois partem de um entendimento “muito normativo” de que uma pessoa cega em uma exposição, por exemplo, quer consumir apenas descrições técnicos e detalhadas, como tamanho de uma obra. Na prática, porém, sabe-se que esse não é o desejo principal.
Assim, Thamyle defende o conceito de “acessibilidade estética”: uma acessibilidade “que envolve o corpo em toda a sua totalidade”. “Quando vou em uma exposição, assim como todo o mundo, o que mais me interessa não é o tamanho do quadro. Não vou com a minha trena medir o tamanho de uma obra de arte. Quero saber o que aquela obra me provoca, como me afeta a partir da descrição”, enfatiza.
Isso se aplica também a shows musicais, visto que as canções despertam emoções que também devem ser captadas pelo intérprete, não sendo apenas uma mera reprodução das letras. Outros exemplos de recursos de acessibilidade são paisagens sonoras em descrições de obras de arte, textos curatoriais em linguagens simples e sessões de cinema adaptadas para neurodivergentes.
Em setembro, mês que marca o Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência, a Secult realizou a ação “Cultura do Acesso”, com programações voltadas à acessibilidade. A ideia é consolidar a cultura da acessibilidade, e não apenas promover iniciativas isoladas.
A visão sobre a necessidade de consolidar a cultura do acesso abrange tanto o público quanto quem consome a arte. Nesse sentido, é importante pensar sobre a ocupação nos equipamentos culturais de trabalhadores que tenham deficiência - o que, para Thamyle Vieira, provoca mudanças em uma dinâmica já estabelecida.
“Antes de qualquer coisa, precisamos trazer pessoas com deficiência para ocupar esses lugares nessas diversas frentes, como artistas, públicos, trabalhadores e gestores. Acho que esse é o ponto para pensarmos programações com acessibilidade desde o início. É preciso ter todo um processo de formação com as pessoas que trabalham nos equipamentos culturais e com o campo artístico para provocar essas pessoas a trazerem a acessibilidade como elemento de criação em suas produções desde o início”, declara.
A importância da formação é enfatizada por Iana Soares, assessora de Formação do Instituto Mirante de Cultura e Arte, organização social (OS) criada para contribuir para a gestão de políticas culturais do Ceará. A atuação do Mirante é ligada, inicialmente, à gestão e execução de atividades de equipamentos públicos culturais em parceria com a Secult.
Em seu cargo, a também jornalista e fotógrafa se define como “mediadora” na relação entre arte e cultura nos equipamentos sob a gestão do Instituto. Ela tem construído com a equipe do Mirante um programa de acessibilidade cultural para potencializar ações que dialogam com a Política Estadual de Cultura e com a legislação brasileira.
O objetivo é tornar essa política um fluxo permanente no trabalho dos equipamentos culturais e que não dependa “da vontade pontual” de alguns profissionais: “Entendemos que a acessibilidade cultural é estruturante e faz parte de nossas ações, desde ofertas de espetáculos, shows e ações formativas a vagas de trabalho reservadas a pessoas com deficiência”.
Assim, segundo Iana Soares, é preciso pensar não apenas no acesso, mas na permanência dessas pessoas — não somente como público nas atividades culturais, mas com protagonismo nas ações. A assessora afirma, por exemplo, que o Instituto Mirante tem pensado cada vez mais em cursos ministrados por pessoas com deficiência, além de destacar artistas défs.
“A formação é fundamental para que essa dimensão transversal seja percebida por todas as pessoas que hoje compõem o Instituto Mirante, tanto na própria sede como os trabalhadores nos equipamentos culturais. A formação é essencial no entendimento de que a acessibilidade cultural é um direito e que ela permite que mais pessoas acessem vários outros direitos, como à arte, ao lazer e à cidadania”, explica.
Iana Soares cita como alguns exemplos de atitudes para a acessibilidade cultural a interlocução com a Secult sobre o assunto e a contratação de uma consultoria especializada para apontar caminhos técnicos, arquitetônicos e formativos.
Para a jornalista, a partir das formações de acessibilidade cultural há a compreensão de que “não é normal estar em uma atividade e não ter pessoas surdas, com deficiência de mobilidade ou mais velhas”, por exemplo, compondo aquele ambiente. “Vamos conseguir avançar nessas discussões cada vez mais se as pessoas e instituições compreenderem que esse desafio é de todos”, contextualiza.
O sentimento de não aceitação de uma realidade na qual pessoas com deficiência são desassistidas também afetou Marina Baffini, artista plástica, arte educadora e especialista em acessibilidade cultural. “Dei aulas de arte por bastante tempo e tinha alunos com deficiência. Comecei a buscar materiais de qualidade para explicar sobre a história da arte, mas percebi haver uma escassez muito grande”, recorda.
Por isso, passou a estudar o que poderia ser feito nesse campo. Criou materiais educativos para cultura e se envolveu cada vez mais em formas de ampliar o acesso à arte. Foi assim que fundou a empresa Inclua-me, responsável por desenvolver projetos de acessibilidade, com adaptações de obras de arte, exposições e materiais educativos para pessoas com deficiência.
Entre os produtos da empresa estão dioramas (modo de apresentação artística tridimensional e realista de cenas da vida real para exposição com finalidade de apreciação tátil), textos em braile, adaptações táteis de obras bidimensionais com diferentes relevos e texturas, materiais lúdicos educativos e escrita em pictogramas.
A ideia é ir além dos recursos tradicionais de acessibilidade, promovendo maior imersão ao público e contemplando diferentes deficiências. Acima de tudo, o interesse é proporcionar uma “experiência estética” em sua plenitude.
“Quando uma pessoa vai visitar um museu ou uma instituição cultural, ela vai em busca de uma experiência estética. Então, se deparar somente com legendas em braile, por exemplo, é muito pouco. O audioguia é muito importante, mas ele traz também esse nível informativo. A pessoa tem a experiência estética quando toca uma peça tátil, uma obra de arte traduzida para poder entender aquela imagem pelo toque”, elucida.
Ela também destaca: “Quando você fica só nesse lugar do texto em braile, por exemplo, você fica muito no lugar da informação e esquece que a arte vai muito além disso. Ela também tem o lado da poética”.
Além de recursos de acessibilidade, a especialista reforça a importância de ultrapassar a “barreira atitudinal”, pois “na maioria das vezes as pessoas conhecem muito pouco” sobre o assunto e “não têm habilidade” para atender um visitante com deficiência.
Evidentemente, essa situação não ocorre apenas na arte e na cultura. É preciso ter compreensão ampla a respeito da necessidade de preparação dos profissionais para prestarem serviços adequados a pessoas com deficiência. No caso de uma pessoa surda, por exemplo, que tenha que ir para um hospital, o atendimento médico será muito “mais confortável linguisticamente” se for feito na Língua Brasileira de Sinais (Libras).
A análise é de Lyvia Cruz, atriz surda, contadora de história em Libras, tradutora de Libras, professora e Mestra em Estudos da Tradução. Até dezembro, ela ministra no Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS-CE) um curso básico de Libras para funcionários do equipamento cultural.
Na formação, ela aborda a “cultura das pessoas surdas”, com informações sobre suas demandas e as melhores práticas para atendê-las. No campo da cultura, cita desafios enquanto uma mãe surda de ir a programações que muitas vezes não têm intérpretes de Libras e, por isso, não conseguir interagir com sua filha.
Além disso, afirma que existem poucos horários de atividades com acessibilidade, o que não permite que a pessoa com deficiência tenha “livre escolha”: “Meu sonho é que exista acessibilidade em todos os horários e em todas as programações. Essa é minha principal dificuldade como mãe surda de uma filha ouvinte: que ela possa estar nos espaços culturais e que tenha intérprete para mim”.
Ao falar sobre sua história com a arte, Lyvia Cruz relata que “não percebeu” em si “uma essência de artista”, pois, em sua visão, na comunidade surda “não há conhecimento na área artística muito profundo e robusto”. Quando sua mãe a levava para assistir a peças teatrais, não havia acessibilidade, e por isso ela não entendia, apenas visualizava.
Ao estudar em uma escola bilíngue, encontrou uma professora que sabia Libras e que a colocava como atriz nos papéis de peças do colégio. Para Lyvia, seu desenvolvimento “foi muito devagar”, até entrar na faculdade e se dedicar a pesquisas acadêmicas. Professora efetiva de Libras no IFCE de Camocim, a contadora de histórias hoje produz arte adaptada para crianças.
Ela também faz traduções literárias para crianças surdas: “Muitos professores de Letras-Libras tinham essa dificuldade de fazer contação de história e teatro para crianças - muitas vezes contando até de forma um pouco negligente, faltavam algumas transformações. É muito importante garantir esse contato das crianças com a arte e a cultura”.
Lyvia reconhece, porém, que houve aumento de acessibilidade na maioria dos shows musicais, mas chama a atenção para a importância dessa presença em teatros e espaços de contação de história.
Com portfólio extenso, um de seus trabalhos é a peça “Vozes Silenciadas”, que dramatiza relatos reais de surdos do interior cearense: “É uma mensagem muito forte, porque retrata o sofrimento surdo, fala sobre nossas angústias e diversos outros assuntos”. O espetáculo será apresentado em 10 de janeiro no Porto Dragão.
Em suas obras, tenta trabalhar a acessibilidade estética, transmitindo os sentimentos das peças em sua plenitude, mas sente falta de intérpretes que sigam essa tendência também - na música, por exemplo.
Sócia da empresa Ondas de Tradução (agência de acessibilidade com serviços de audiodescrição, legendagem e interpretação), ela destaca a importância da arte na sua vida: “A cultura me ensinou a viver, me guiou pelos caminhos quando eu não tinha nada, quando não sabia onde deveria estar, quando ninguém parou para me orientar”.