A quadrinista holandesa Aimée De Jongh faz uma nova interpretação do clássico da literatura inglesa "O Senhor das Moscas" (1954) em HQ homônimo já disponível no Brasil. A obra, lançada no início de outubro pela Editora Suma, tem uma abordagem visual que enfatiza a transformação gradual e sombria dos personagens infantis apresentados na trama.
Aimée recria a história de crianças isoladas na ilha paradisíaca que, progressivamente, mergulham no caos da violência descabida e na selvageria presente na humanidade. Inspirada pela densidade emocional e pela crítica social presente no romance, a artista equilibra inocência e brutalidade, estabelecendo um grande contraste entre o que as crianças aparentam ser e no que elas se transformam ao passar dias longe das regras da sociedade.
Em entrevista ao V&A, Aimée compartilha os desafios da criação dessa adaptação visual e mostra que a produção é um novo ponto de acesso para que novas gerações se aproximem do universo simbólico de William Golding.
O POVO - Como você abordou a adaptação da atmosfera sombria e perturbadora do romance para o formato de quadrinhos, considerando a necessidade de equilibrar a representação da violência com a "inocência" das crianças?
Aimée De Jongh - Como artista, trabalho em um meio visual. É por isso que decidi usar desenhos para enfatizar o contraste entre a inocência e a escuridão. As crianças são desenhadas de uma maneira bem infantil, com cabeças grandes e olhos fofos, e elas não parecem perigosas à primeira vista. Quando elas realizam atos violentos mais tarde no livro, como jogar pedras umas nas outras ou até mesmo atacar violentamente um dos garotos, isso causa um grande impacto. A violência parece muito repentina e cria um efeito chocante.
OP- Considerando que "O Senhor das Moscas" é uma crítica social e política, como você acredita que a adaptação em quadrinhos pode ajudar a alcançar um público ainda maior e causar reflexão sobre os temas e as mensagens da obra?
Aimée - Acho que muitos adolescentes hoje em dia não gostam mais de ler, pois recebem muita informação diariamente nas redes sociais. Livros são lentos, é preciso tempo para lê-los, e me pergunto quantos adolescentes ainda pegam o "O Senhor das Moscas" original hoje em dia. Uma graphic novel é um meio muito mais acessível. O aspecto visual e o fato de envolver menos texto, definitivamente, atrairão leitores jovens. E já ouvi de alguns leitores que compraram o romance original depois de terminarem a graphic novel, por curiosidade. Isso é realmente ótimo de ouvir!
OP - Como você conseguiu transmitir a transformação da ilha de um paraíso tropical para um ambiente sombrio e hostil, destacando a deterioração da sociedade dos garotos, por meio da sua arte?
Aimée - Ao ler, você perceberá que as cores vibrantes das primeiras cenas dão lugar a tons mais escuros e cinzentos. Os garotos ficam menos otimistas sobre o resgate, e você vê isso refletido nas cores. Você até vê isso quando as ondas vêm e apagam o sinal de S.O.S. deles na praia. Também focamos muito mais nos garotos e vemos o mundo de sua perspectiva, mais para o final do livro. Isso acontece porque a beleza da ilha, que era tão impressionante nos primeiros capítulos, já não está mais na mente deles; agora é sobrevivência.
OP - O que te inspirou a adaptar essa obra? O que te fascina nela?
Aimée - É difícil não ficar chocado com a crueldade e a violência neste livro. O fato de serem crianças que se comportam dessa maneira torna ainda mais difícil de ler. Eu não diria que é terror, mas definitivamente perdi algumas noites de sono depois de lê-lo pela primeira vez, aos 14 anos. O comentário social que Golding colocou neste livro era relevante em 1954, quase 10 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. E acredito que ainda seja relevante hoje. Existem muitos momentos na história que me lembram do que está acontecendo na política hoje. E a maneira como os garotos tratam a ilha, colocando fogo e destruindo-a, é semelhante à forma como todos nós destruímos a Terra com nossa constante necessidade de desenvolvimento. É um livro que será relevante enquanto a humanidade existir, e é isso que me fascina sobre ele.
O Senhor Das Moscas