Há inúmeras narrativas e processos por trás de cada prato de comida. É nesse "bastidor" do alimento, muitas vezes invisibilizado, que o veganismo traz para o centro do debate e busca ressignificação. Segundo a Organização The Vegan Society, o veganismo é uma filosofia e um estilo de vida que busca "excluir, na medida do possível e praticável, todas as formas de exploração e crueldade com animais para alimentação, vestuário ou qualquer outro propósito".
O "fins que justificam os meios" são o oposto do que prega o veganismo, em que as pessoas fazem escolhas do seu dia a dia baseados na sua ideologia, que extingue componentes de origem animal. Um dos maiores reflexos desse estilo de vida é na gastronomia, onde elementos comuns da cozinha, como carne, ovos e laticínios, são descartados.
A chef do restaurante TerrAana, Ana Mota, conta que trabalhou com gastronomia na Espanha, mas decidiu voltar ao Brasil para abrir o seu próprio restaurante, mas com pratos totalmente feitos à base vegetal, visto que a própria não consumia carne desde os 15 anos. "Na adolescência, eu era da Associação Cearense de Handebol e viajava o Brasil todo sem sentir falta da carne. Eu comia arroz e feijão, uma dupla perfeita. Naquela época, anos 1980, não tinha nenhum produto vegano além dos enlatados da Superbom", diz
Desde a pandemia, seu restaurante passou a funcionar só no espaço digital, com delivery e, atualmente, Ana está no processo de reabertura do TerrAna e participa de eventos culturais e feirinha de comida com seu cardápio, como no Balaio Veg.
Claudiane Cardoso, de 24 anos, é vegana há quase dois anos e tomou a decisão de mudar seu estilo de vida durante a pandemia. "Como eu ficava muito tempo em casa, via muitos vídeos no Youtube de veganos, que explicavam porque eles não comiam carne e como eles supriam isso na alimentação. Depois disso, eu fui estudar e entendi o que eu queria da minha vida", explica.
"Eu assisti ao documentário 'Dominion', que traz muita informação sobre como é o processo das indústrias alimentícias na pecuária e mostravam como tudo era feito, como o abate. Ao mesmo tempo que fiquei com nojo, me deu um aperto e eu comecei a chorar. Eu enxerguei aqueles animais como um ser vivo de fato e passei a mudar minha alimentação, não consegui mais comer nada à base de animais", compartilha Anne, como prefere ser chamada.
Marcia Beatriz Zanchi, de 52 anos, que é vegana há 10 anos e encerrou seu consumo de carne há mais de 20 anos, conta que sua aproximação com o veganismo se deu em suas vivências de ioga. "Hoje eu entendo que o veganismo não é apenas tirar a carne, o ovo e o queijo e outras coisas do prato, é uma filosofia que inclui os cosméticos, produtos de limpeza que se usa em casa, tipo de roupas e calçados, enfim. É um conjunto de itens que fazem parte de um estilo de vida", aponta.
"Quando as cortinas dos bastidores da indústria alimentícia começam a ser abertas, começamos a perceber quanta crueldade e quanto sofrimento existe no que parece um inocente bife, numa coxa de frango que a gente coloca no prato. Alí tem muita exploração, muitos agrotóxicos, poluição de rios e mares, monoculturas que extinguem a diversidade dos reinos vegetais e animais", acrescenta ela, que tem formação em Educação Física, Yoga e está terminando uma graduação em Nutrição.
Marcia complementa: "No momento de uma crise planetária, como a que nós nos encontramos, eu acredito que está na hora de todas as pessoas do planeta despertarem para essa questão e perceberem que o planeta não sustenta mais a carne e a produção animal para servir de alimento ao ser humano".
Quanto mais acessível, melhor: essa é a premissa que circula entre quem aderiu ao veganismo e deseja que o estilo de vida seja melhor recebido na sociedade geral. Para isso, é necessário apoiar novos empresários que investem em produtos "cruelty-free", tanto objetos quanto na alimentação.
Livaní Moura, de 29 anos, é chef e proprietária do restaurante e cafeteria Liva Vida Vegana que, segundo ela, nasceu após perceber que sua relação com a comida era o que ela gostaria de desenvolver profissionalmente. "Na pandemia, eu parei tudo e fui entender o que era para mim. Fiz atividades de autoconhecimento, como ioga, e fui me aprofundando em coisas de que eu gostava e eu gostava de cozinhar. Eu fui experimentando fazer coisas que eram do meu novo mundo, que era o veganismo", compartilha.
"Eu comecei a levar como desafio pessoal fazer na versão vegana pratos que as pessoas diziam que não dava para fazer, como o queijo, o cookie, enfim. (...) O veganismo é relativamente novo para muita gente e as questões climáticas estão provando que não existe outra alternativa, como um planeta B. Empresas como a nossa, que dispõem de várias alternativas sem abrir mão do sabor, acabam sendo um recurso para não deixar de comer aquelas comidas que são afetivas", continua a chef, que trabalha com cerca de dez pessoas no seu restaurante atualmente.
Livaní finaliza argumentando sobre a urgência de mudar os hábitos de consumo e ser mais tolerante com o veganismo: "A maneira como as pessoas vivem não é sustentável, não vai se suportar nos próximos anos. Se a gente não mudar nosso estilo de vida, a gente não vai viver por muito tempo. Tem várias pesquisas que apontam que a gente está no limite e que o veganismo é a solução".
Entre as opções do vasto cardápio da Liva Cozinha Vegana estão entradinhas como o Falafel (porção por R$ 27), bolinhas de queijo vegano (porção por R$ 27) e coxinhas de caju (porção por R$ 29,50). De prato principal, há o Bife de soja à parmegiana (R$ 82,95), Nhoque de batata (R$ 59), Polpettone recheado (R$ 86), entre outros.
Os doces da empresa são diversos. Entre eles há o cinammon roll tradicional ou de chocolate (R$ 20), fatia de cheesecake com sabores variados de frutas (R$ 24,80), cookies (R$ 15,30) e trufas (R$ 7,90). Na parte de cafeteria, tem ainda o Croissant de queijo, tomate e pesto (R$ 39), sanduíche queijo quente (R$ 29,95), empanada de brócolis (R$ 22), entre outros.
Sorvete da Reserva
Com proposta de oferecer sabores diversos e 100% veganos, o Sorvete da Reserva dispõe de sabores como açaí, rapadura, baunilha com caramelo salgado, coco com doce de abacaxi, capim santo com morango, coco com geleia de morango, cupuaçu crocante e doce de leite com cumaru. O preço varia de R$16 (1 sabor), R$20 (2 sabores) e R$48 (viagem, até 6 sabores).
Malaguetta
Localizado no Benfica está o Malaguetta, que dispõe de cardápio 100% vegetal e trabalha com refeições de almoço por R$ 25, também com salgadinhos artesanais e congelados. Por R$ 13, é possível comprar um dos salgados grandes do estabelecimento, como a coxinhas de caju e de brócolis, risole de palmito ou de couve flor e enroladinho de salsicha vegetal. Carro-chefe da casa é o acarajé, por R$ 25.
Pelos animais, por você e pelo planeta
Sabe aquela revolta que você sentiu quando viu o vereador truculento torturando um porquinho? É a semente do veganismo que tem dentro de você. A grande maioria da população é sensível ao sofrimento dos animais e não teria coragem de matá-los. Não tenha dúvida: não há assassinato humanizado nos abatedouros e as condições de criação e reprodução desses animais é de muito sofrimento.
E isso só acontece porque tem mercado. Ao tornar-se vegano, você tira esse peso da alma e ganha uma vida mais saudável, pois o consumo de animais e produtos derivados é vetor de inflamações e de diversas doenças, segundo a OMS. Não somos animais carnívoros. Somos onívoros. Ou seja, nosso sistema digestivo é capaz de digerir carnes de animais, mas nosso intestino é mais apropriado aos vegetais.
Outra interseção importante do veganismo é o meio-ambiente. A produção de animais para abate é a que mais derruba florestas para pasto e plantação de soja e milho para ração de animais. Também está entre as maiores pegadas hídricas: um quilo de carne bovina consome cerca de 15,5 mil litros de água até chegar à sua mesa.
Sobre a proteína, você encontra em muitos vegetais e a maior concentração está nas leguminosas como feijões, grão de bico, ervilha, lentilha, soja e preparados como tofu. Ao abraçar o veganismo, você vai descobrir um incrível universo de sabores, texturas e aromas e uma variedade quase infinita de grãos, sementes, oleaginosas, frutas, legumes, cogumelos, raízes e folhas que a natureza nos proporciona. Deles saem combinações gastronômicas deliciosas como os queijos veganos, bolos, sorvetes, leites e carnes vegetais e até a feijoada e o churrasquinho com sabores praticamente idênticos ao que você está acostumado. E o melhor: sem precisar sacrificar nenhum animal.
Eliziane Colares, empresária e colunista do O POVO