Autor de “Galileia”, Ronaldo Correia de Brito admite: o sertão é não apenas lugar de partida, mas de retorno. A ele se volta sempre, como a uma paisagem da qual se afasta e se aproxima na mesma medida. “Rio sangue” (Alfaguara), mais novo romance do cearense de Saboeiro, é exemplo disso.
Nele, uma multiplicidade de vozes reconta uma história, que se apanha no ar ao modo de tantas outras que fluem no espaço geográfico-literário sertanejo. Na moldura dessa geografia, dão-se à vista João, José e Páscoa, jovem indígena capturada ainda menina. Tudo que se passa então é contado com a força da “prosa bíblica” de Ronaldo.
Em conversa com O POVO, o escritor reflete sobre os pontos cardeais do seu trabalho. Das referências presentes numa religiosidade sincrética a uma investigação sobre tipos humanos, fixação na terra e transmissão filial, o médico-romancista-dramaturgo recupera essa tapeçaria de signos com os quais funda não o sertão real, mas o imaginário.
“É um exercício de linguagem, ou de linguagens, se preferir”, antecipa o artista, para quem a oralidade desempenha papel importante na confecção de “Rio sangue”.
Ali pelo terço final do livro, um dos personagens diz a seu interlocutor: “No sertão habitam muitos narradores, cada um com sua voz própria, seu original. Penso que não há outra maneira de escrever esse romance senão deixar que cada um fale do seu jeito”.
É esse corte amalgamado entre o falar e o escrever que caracteriza parte considerável da obra da Ronaldo, que se empenha no desenho de cenas e de perfis talhados pelo tempo, força estruturante dos vínculos sociais.
Narrador premiado, Ronaldo abre hoje, a partir das 18 horas, no auditório da reitoria da UFC, a 16ª Semana de Humanidades, que celebra os 55 anos do Centro de Humanidades (CH). Instado a tratar dos caminhos para os cursos de humanas em meio a um ambiente político hostil, ele considera que esse campo do saber está cada vez mais sob ameaça.
“O capitalismo não vê lucro no ensino dessas disciplinas. Caminhamos para a ditadura da técnica. Mas não a técnica do grego, que significava ‘a arte de’. A técnica hoje se refere a produção, número, capital. O conhecimento das humanidades não se mensura em números perversos e histéricos”, analisa.
O POVO – “Rio sangue” transmite a força do sertão. Como esse espaço é figurado na sua literatura?
Ronaldo Correia de Brito – Os escritores costumam ter um lugar de referência, uma paisagem. No Brasil, há grandes exemplos disso: Jorge Amado, Rosa, Machado, Lins do Rego, Graciliano. Minha paisagem é o sertão. Por ele eu transito ou a ele sempre retorno. Mesmo que meus personagens sejam neuroticamente urbanos, estão em molduras sertanejas.
O POVO – Há ecos bíblicos no seu trabalho. Qual o papel da religiosidade em “Rio Sangue”?
Ronaldo Correia de Brito – O sertão se assemelha a um mundo bíblico de pastores, violência, assassinatos, estupros. Saramago enxergava a Bíblia assim. A religião católica dos catequistas não controlou essa violência, só fez acirrar os embates entre africanos, indígenas, ibéricos e judeus. Em “Rio sangue”, a religiosidade é mostrada como conflito e não como conciliação.
O POVO – Violência, transmissão e hereditariedade são temas presentes, assim como a filiação. Como esses tópicos se relacionam?
Ronaldo Correia de Brito – Nossa conquista é marcada por brigas de família. Os colonizadores repetiram aqui o mesmo modelo de dominação e escravização de romanos, gregos, hebreus, persas… Em suma, s história do homem não passa de uma sucessão de guerras.
O POVO – Como a obra “as Mil e uma noites” participa da elaboração do romance para além da ideia desse fio de narrativa indefinidamente desfiado?
Ronaldo Correia de Brito – Vivi em comunidades narrativas. Desejei escrever um romance em que não houvesse um único narrador. Em “Rio sangue”, todos os personagens contam histórias, a exemplo das “Mil e uma noites”. É um exercício de linguagem, ou de linguagens, se preferir.
O POVO – Como lida com a tradição literária, sobretudo a mais clássica?
Ronaldo Correia de Brito – Minha primeira formação literária foi oral. No Brasil, ainda não resolvemos o impasse entre a oralidade e a escrita. Sempre li autores clássicos e contemporâneos. Não considero insulto me associarem aos clássicos.
O POVO – Há marcos sucessivos que dizem respeito ao premiado “Galileia” e também a “Faca”. Como revê a própria trajetória?
Ronaldo Correia de Brito – Sou um escritor sempre tentando escrever um livro novo, diferente. Não uso truques nem busco repetir a fórmula de sucesso. Cada livro novo é um risco que corro.
O POVO – O que tem preparado para a conferencia de abertura da 16ª Semana de Humanidades da UFC, logo mais?
Ronaldo Correia de Brito – Gostaria de ter uma conversa produtiva sobre o caminho dos cursos de humanas. Como fortalecer os estudos de letras, história, geografia, filosofia etc. num mundo tão avesso ao humano.
O POVO – Considera que as humanidades estejam em perigo?
Ronaldo Correia de Brito – Sim, considero. As humanidades sempre estiveram vinculadas à busca do conhecimento em si, da cultura. Essa busca não significava, necessariamente, o lucro, o capital. O capitalismo e todos os regimes de força e ignorância são inimigos do saber, da cultura. Foi assim no stalinismo, no fascismo, no nazismo, no maoismo com sua revolução cultural etc. A primeira tentativa do governo Temer foi extinguir o Ministério da Cultura. Não conseguiu, mas Bolsonaro acabou o ministério, transformou-o numa secretaria. Todo regime autoritário é inimigo de professores, artistas e intelectuais. Busca logo pôr fim aos cursos de filosofia, sociologia, história, psicologia. O capitalismo não vê lucro no ensino dessas disciplinas. Caminhamos para a ditadura da técnica. Mas não a técnica do grego, que significava “a arte de”. A técnica hoje se refere a produção, número, capital. O conhecimento das humanidades não se mensura em números perversos e histéricos.
Lançamento "Rio Sangue"