"Ela fez uma resistência através da gentileza, do sorriso, da persuasão, e nunca chorou em público. Nem diante dos filhos ela chorou", contou Fernanda Torres em entrevista ao O POVO, por telefone de Los Angeles, num rápido intervalo da sua intensa campanha internacional para a qual ela diz ter "entregue" sua vida.
Em "Ainda Estou Aqui" ela interpreta Eunice Paiva, esposa de Rubens Paiva, ex-deputado que foi sequestrado em 1971 pela Ditadura Militar em plena luz do dia. Com a família rachada por essa ausência súbita, ela entra num espiral de angústias e revoltas para encontrar uma resposta sobre o paradeiro do marido.
Fernanda Torres preenche a aflição dessa personagem pelo avesso das expectativas, longe do barulho, numa sutileza que vai desconcertando a audiência aos poucos. Essa abordagem é feita com tanto cuidado e naturalidade que alguns jornalistas declararam seu nome aos holofotes do Oscar no mesmo dia em que o filme estreou no 81º Festival de Veneza no começo de setembro.
Quando chegou no Brasil, na última quinta-feira, 7 de novembro, o sucesso impressionou até os mais otimistas diante do cenário recorrentemente frustrante de público para o Cinema Brasileiro que não é comédia. Com exibição em 189 cidades e 610 salas, o filme levou mais de 350 mil pessoas aos cinemas no primeiro final de semana, arrecadando cerca de R$ 8,6 milhões.
"O público chora por ela", pontuou Torres quando perguntada sobre a razão da audiência ter sido fisgada de forma tão imediata. "É um personagem trágico que vai em frente. Já que ela não estoura, o público fica do lado dela. Isso é um dos mistérios do filme". Confira a entrevista:
O POVO: Fui assistir ao filme numa sessão das 15h e a sala estava lotada. A plateia foi sendo tomada por um silêncio angustiante e, no fim, aplausos. Quando estava filmando, você já tinha noção de que essa história seria abraçada pelo público?
Fernanda Torres: Não, de jeito nenhum. A gente nunca faz as coisas, eu pelo menos, pensando nisso. Eu tinha noção de que eu gostava muito do roteiro, tinha noção de que era uma coisa importante de ser feita, a volta do Walter Salles para o Brasil. Eu queria muito que ele tivesse uma experiencia boa, que fosse de suma importância para ele. Quando assisti ao filme fiquei muito surpresa com o nível de honestidade. Com o fato de nenhum ator parecer estar representando, parece que você está realmente naquela casa. É um filme muito generoso porque o Walter quase desaparece como diretor. Ele não se exibe em nenhum momento, e aí eu vi como ele tinha dirigido nós todos com essa mesma exigência da verdade. Os figurinos, os cenários, a câmera, a luz. É algo muito raro. Eu fiquei meio espantada quando eu assisti. Eu acho que o público tem isso. Tem um boca-a-boca muito grande agora do filme. Que primeiro eu sinto que começou por causa da exibição em Veneza, a coisa do Oscar... Mas eu acho que a pessoa vai no cinema e o filme entrega mais do que ela esperava. Acho que tem uma comoção pelo próprio filme agora. Muito lindo.
OP: Ainda na sala eu ouvi pessoas comentando que conheciam pouco ou quase nada dessa história. O que é curioso também.
Fernanda: Eu também não sabia. Eu sabia por alto. Quando o livro saiu eu corri para comprar porque eu sabia, sempre soube, que o Rubens Paiva tinha sido torturado pela Ditadura e o corpo nunca tinha aparecido. Mas eu nunca soube como. Eu também olhava jornalistas que não se tinha muita ideia. De repente aquele livro extraordinário do Marcelo, eu li antes de saber que eu ia fazer o filme. E que me apresentava essa mulher incrível, que nenhum de nós sabia dela.
OP: Impressionante.
Fernanda: É um pedaço da história que a gente não conhecia. O público ainda sai com isso. Do ponto de vista, não de um guerrilheiro, de um cara politizado, mas da família. E isso eu acho que cria uma empatia com o público e fura a bolha de esquerda, direita, progressista ou conservador. Porque eu tenho visto amigos adolescentes dos meus filhos e sobrinhos, que estão indo ver e entendem que aquilo não é justo. O fato de o Walter ter contado a história de uma mãe, de uma família, isso furou a bolha.
OP: Isso tem muita razão também pela forma como você dá vida a essa personagem. Ela está vivendo uma grande ameaça, rodeada de medo e tensões, mas ela nunca explode.
Fernanda: A gente tinha um pacto de ser fiel a ela. E essa foi a maneira como a Eunice se portou na vida. Ela achava que se vitimizar era uma maneira da Ditadura vencer sobre ela. Então ela fez uma resistência através da gentileza, do sorriso, da persuasão, e nunca chorou em público. Nem diante dos filhos ela chorou. Então a gente não podia fazer um melodrama. O Walter cortou as cenas que eu chorava.
OP: Então você chegou a gravar cenas mais efusivas?
Fernanda: Tinham duas cenas em que eu chorava e foram cortadas. E a contensão foi algo que veio dela. Ela não podia se sentar na calçada e chorar. É um personagem trágico que vai em frente. Já que ela não estoura, o público fica do lado dela. O público chora por ela. O público tem uma emoção pelo fato dela não externar aquilo. Isso é um dos mistérios do filme.
OP: O filme cria uma sinergia com a maneira da Eunice perceber a realidade, criando expectativas sem qualquer garantia de resposta. Será que ele vai voltar? Ainda há mesmo alguma esperança? Isso sobrevoa.
Fernanda: Isso é lindo porque tudo o que o espectador sabe é o que a Eunice sabia. Quando eu assisti o filme eu fiquei preocupada porque o Walter tinha cortado todas as informações históricas que costumam ter em filmes sobre a Ditadura. E eu me perguntava se o público iria entender. Na primeira vez que eu vi eu comecei a chorar quando ela volta da prisão. Mas será que o público estava entendendo essas cartas e acontecimentos? E o público entende. E o choque é esse. O cara vai embora e vai voltar à noite. O público fica com ela. Quando ela entra no DOI-CODI não tem cena de tortura. Tudo o que o publico vê é o que ela ouve. O público só vê por ela. Isso tira do filme essa coisa de "contar fatos". O filme só conta sensações e nisso ele é muito forte.
OP: Vivendo essa grande oportunidade de exibir o filme ao redor do mundo, você está sentindo isso também de públicos estrangeiros?
Fernanda: O Walter fez um filme que não parece ficção. Você tem a sensação de estar naquela casa. Existem convenções da ficção, de como gritar, como representar, como chorar, como mostrar os anos 1970. Aqui são anos 1970 que não parecem anos 1970. Parece gente normal, aquela casa tem cheiro de alho, não é anos 1970 de capa de revista de moda. As pessoas aqui fora também sentem o impacto. Pelo grau de honestidade do filme.
OP: Imagino que você esteja num mergulho muito intenso na campanha pelas premiações. Como está essa rotina?
Fernanda: Eu entreguei minha vida para o filme até março. Tivemos Veneza, Toronto, Nova Iorque, Londres, São Paulo, Rio de Janeiro... Eu fiquei só três dias no Rio. Peguei um avião e agora vou ficar 25 dias em Los Angeles, fiz algumas sessões aqui. Essa semana é de matar. Amanhã tem três eventos, é todo dia. É um trabalho de tentar fazer o filme ser visto porque ele não estreou aqui ainda. Ele precisa ser visto pela Academia, pelo Globo de Ouro. Agora é um trabalho político de fazer o filme ser visto.
OP: Você falou em outras entrevistas a sua percepção sobre o Oscar, de que ele não é tudo. Lembra as falas que você fez quando sua mãe foi indicada, em 1999, de que ele significa algo grande, mas que não significa tudo.
Fernanda: O Oscar é muito importante. Temos que falar isso também porque senão parece um desmerecimento. Eu acho que uma primeira curiosidade do filme veio com essa possibilidade, e agora o filme no Brasil atingiu uma outra coisa que é o próprio filme. Eu sinto que as pessoas pararam de perguntar tanto do Oscar e passaram a falar do filme. Estamos trabalhando para isso.
Ainda Estou Aqui
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