O mundo da música sempre trouxe figuras ambíguas e inatingidas, tal como realezas e deuses. E ao falar de música e realeza, não podemos deixar de falar de Elvis Aaron Presley (1935 - 1977), o mais mortal daqueles que já pisaram no Monte Olimpo.
Vindo do subúrbio do sul de um segregado Estados Unidos da América, em um contexto de marcas culturais ainda não superadas pelo país, o jovem branco loiro cresceu cercado pela música expressada pela comunidade negra e foi conquistando simpatia e ódio.
Com o rebolar sensual do quadril e a mexida de pernas inquietantes, atos vistos como pervertidos por grande parte de sociedade americana, juntamente com um timbre inigualável e baladas apaixonantes, Elvis construiu-se único desde o princípio.
Mas assim como Icarus, Presley chegou perto demais do sol, e experimentou um desastre retubante. São estes dois Elvis que o diretor e roteirista Jason Hehir apresenta em "O Retorno do Rei: Queda e Ascensão de Elvis Presley", documentário lançado pela Netflix no último dia 13.
O cantor de Mississippi, identificado intimamente em Memphis, alcançou projeção de sucesso como nunca visto antes e vivenciou a dificuldade de adaptação à medida que o tempo avançou e ele parecia ficar para trás.
Por meio de relatos de amigos pessoais, da viúva Priscilla Presley, de historiadores, músicos e observadores, o documentário despe Elvis e o apresenta como ele nunca quis transparecer. O autoconfiante e performático artista nos palcos era inseguro e nervoso, como qualquer outro.
O foco do longa é mostrar a ascensão nos anos 1950 até ele cair na armadilha de se afastar dos palcos, seja para servir o exército americano ou para postular um espaço entre os grandes astros de Hollywood e cair do pedestal em que se colocou.
Preso na sua pretensão de ser um Steve McQueen ou Marlon Brando, além das armadilhas do ambicioso agente Coronel Tom Parker, Elvis transformou-se em uma caricatura de si mesmo, fazendo repetidos e muitos filmes fracos.
Desta fase, alguns hits de músicas feitas para os longas mantiveram o astro vivo, como "Can't Help Falling in Love", seu maior sucesso, "Trouble", "Jailhouse Rock", e até "Kiss Me Quick", muito famosa no Brasil.
O tempo foi passando. A América, assim como o restante do mundo, passava por fortes mudanças, até que, então, Elvis Presley não era a mais nova sensação. Quatro jovens britânicos surgiam como um meteoro chamado The Beatles. Para eles, Elvis era uma referência, e para o mundo, Elvis era ultrapassado.
A produção cinematográfica é sensível e feliz ao mostrar o cantor inseguro por meio dos relatos de quem o acompanhou tão de perto. Além disso, a voz irreconhecível dele aparece para dar os seus pitacos e não deixar que ninguém em seu próprio documentário minta.
Acompanhando tudo isso, Elvis percebe que, para um retorno triunfante, ele precisa também voltar às suas origens e fazer o que mais gosta. Era no gospel em que ele se inspirava e se sentia feliz, já no rock ele se mostrava para o mundo.
Tal abordagem foi semelhantemente representada em "Elvis (2022)", cinebiografia dirigida por Baz Luhrmann, que comenta suas impressões sobre o rei. Mas o documentário é mais cru e menos fantasioso, o que torna Elvis mais humano.
Para o seu regresso espetacular, Presley juntou tudo isso no especial de TV transmitido pela NBC no final de 1968. De couro preto, cantando gospel e rock, o tímido e inseguro Elvis cheio de falhas se apresenta para poucas centenas de pessoas presencialmente, mas milhares em toda a América, e mostra sua melhor versão.
Livre, leve e solto, as pernas trêmulas voltam a dançar e seduzir o público. Elvis Presley resgata o que de melhor teve e teria. O final já é sabido, o rei sucumbe a si mesmo e deixa o trono sem herdeiro deste então. Mas como deuses, nunca morre.