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A história sobre rodas
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A história sobre rodas

|cartola|Inaugurado este mês em Campos de Jordão, o museu Carde conta histórias do Brasil sob o ponto de vista da indústria automobilística
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Salas do Museu Carro, Arte, Design e Educação, em São Paulo  (Foto: Daniela Magario)
Foto: Daniela Magario Salas do Museu Carro, Arte, Design e Educação, em São Paulo

O historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello diz que, se você perguntar para o passado, ele responde. Mas é preciso saber fazer a pergunta correta. Por exemplo, é possível contar a história do Brasil, seus avanços tecnológicos, lutas classistas, sua cultura, fatos curiosos a partir, por exemplo, dos carros. Desde que os primeiros automóveis chegaram ao País até a instalação e crescimento da indústria automobilística nacional, muitas transformações individuais e coletivas aconteceram.

É isso que mostra o museu Carro, Arte, Design e Educação, ou Carde (lê-se "Cardê"), recém construído no Alto da Boa Vista, região com mata farta e cenário privilegiado de Campos de Jordão (SP). Com abertura ao público prevista para 28 de novembro, o equipamento da Fundação Lia Maria Aguiar (FLMA) tem dois andares construídos numa área verde de 200 mil m² que combina exposição de carros com objetos de arte, joias crioulas, inteligência natural e artificial, fotos e vídeos históricos, painéis interativos e uma fartura de informação que vai desde o surgimento do rock nos EUA até o quanto essa mesma indústria automobilística foi prejudicial à causa indígena.

O Carde abre com uma "sala de descompressão", onde vídeos do cantor e ator Seu Jorge e da artista e professora Daiara Tukano convidam o público a entender o que vem a seguir não apenas como uma exposição de automóveis, mas como um espaço para refletir a história humana. Tanto que a sala seguinte conta com uma gigantesca e colorida peça de crochê feita pelo Instituto Proeza. Realizado ao longo de um ano e meio por cerca de 200 mulheres atendidas no projeto social de Brasília, a peça retrata uma imensa mata tropical e tem ao centro um cajueiro - de metal e crochê - que tem no topo o Brasinca Uirapuru, raro automóvel de 1964 pintado com as corres do pássaro Uirapuru - amarelo, vermelho e preto.

A ideia é do artista cearense Rudá Jenipapo. "Quais foram os impactos que o mundo automobilístico trouxe para dentro dos territórios indígenas? Foi um estrago muito grande por que trouxe as estradas para dentro dos territórios, um fluxo muito grande de automóveis. Trazer a arte dos povos indígenas para dentro do museu é também uma forma de informar que, além de ser bonito o automóvel, de ser gratificante estar dentro dele, o quanto ele destruiu, o quanto ele transformou outros habitats, outros povos", explica Rudá.

Após o salão de entrada, o museu segue por salas temáticas, com iluminação e ambiência próprias, contextos históricos e muitos automóveis que contam sobre visitas de líderes políticos e religiosos ao Brasil, e até um dos primeiros acidentes automobilísticos nacionais, protagonizado pelo abolicionista José do Patrocínio. Quem conta essa história é Heloisa Starling, professora Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e responsável pela pesquisa bibliográfica e documental do Carde. Ela fala também sobre uma Rural Willys que pertenceu ao engenheiro agrônomo e político carioca Bernardo Sayão na época da construção da estrada Belém-Brasília.

O projeto era ambicioso, mas tinha, entre tantos problemas, que encontrar como levar alimentos para as equipes que trabalhavam no meio da mata. Aviões levavam os alimentos e jogavam no meio da mata, mas como as equipes iriam encontra-los? A solução foi colocar um gato vivo dentro dos sacos de mantimentos para que as equipes ouvissem os miados quando chegassem perto. "É como se ele acendesse o farol e iluminasse um caminho no passado. Eu comecei a me dar conta de que o carro contava uma história e essa história abria um caminho para a gente ir para o passado e conhecer mais do Brasil. E por que nós vamos querer conhecer essa história? Porque ela forma repertório para nós pensarmos o presente", ilustra Heloisa.

A história de amor do empresário Henrique Lage com a cantora Gabriella Besanzoni é retratada numa sala especial que abriga um Isotta Fraschini, um dos mais luxuosos veículos europeus dos anos 1920, e faz referência ao Parque Lage, no Rio de Janeiro. Um raro McLaren Senna GTR, criado em homenagem ao piloto Ayrton Senna. Carros de passeio com porta de palha, feitos numa época em que a prioridade da indústria metalúrgica era a guerra. E ainda um dos cinco Lincoln K 1938 encomendado por Adhemar de Barros, ex-governador paulista, que transportou Getúlio Vargas, Charles de Gaulle e Elizabeth II. Esses e muitos outros automóveis foram testemunhas da história e agora encontram um lugar para compartilharem o que viram.

 

Espaço imersivo, criativo e educativo

Artista plástico, arquiteto e designer, Gringo Cardia já assinou projetos de museus como o Memorial Minas Gerais (BH), Museu da Cruz Vermelha (Suíça), Memorial Casa do Rio Vermelho (BA) e Museu das Telecomunicações (RJ). É ele também à frente do projeto do Museu Carde. "Esse museu eu parti dos períodos de arte no mundo, a partir do século XX. A gente baseou isso aqui em arte e história", explica ele em entrevista exclusiva ao Vida&Arte.

Da art nouveau à pop art, ele foi construindo a linha histórica que vai pontuando a evolução da indústria automobilística, misturando com a história política e estética, dos movimentos visuais. "Tudo misturado, como é a vida da gente", sintetiza ele, que aponta a entrada do museu, com a imensa teia de crochê, como seu espaço preferido. "Ali faz as pessoas refletirem. Tudo que você não espera ver num museu de máquina é espírito. Você chega e vê aquilo: uma árvore, um carro voando, cajus e aquela coisa psicodélica, lisérgica. Para mim, você vira a pessoa do avesso", justifica.

Para ele, o encontro da arte indígena com o crochê feito por mulheres de Brasília que vivem em situação de vulnerabilidade, tudo dentro de um museu de carros, gera o impacto esperado. "Você vê que as máquinas são incríveis, mas as pessoas são muito mais", conta Gringo.

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