O interior do Rio Grande do Norte enfrenta uma luta árdua contra a fome, consequência de uma seca severa que castiga a região. Com quase um ano sem chuvas, as famílias locais vivem o drama da escassez de alimentos, da falta de oportunidades e do abandono governamental. É nesse cenário desolador que Luckas Iohanathan, autor natural de Mossoró, ambienta sua obra "Como Pedra", uma história em quadrinhos que conquistou o Prêmio Jabuti de 2024.
A narrativa acompanha Cristovão, ou simplesmente Cristo, como prefere ser chamado; sua esposa, cujo nome, segundo ela, "não importa"; e a filha do casal, Rosa, que tem deficiência. Em uma certa manhã, a criança despertou doente e, desde então, depende de uma cadeira de rodas e tem ataques epiléticos. Com escassos recursos, a família sobrevive com dificuldade, sustentando-se graças a uma única vaca que pertence a eles, Beatriz.
"Como Pedra" é ilustrada de forma minimalista, utilizando apenas três cores: preto, branco e laranja. Essa escolha estética confere à obra um tom sóbrio e, ao mesmo tempo, realça detalhes cruciais, garantindo que nada passe despercebido pelo leitor. Luckas Iohanathan desenvolve a narrativa de maneira gradual. À medida que as páginas avançam, a intensidade cresce, prendendo o público de forma poderosa.
O enredo dialoga diretamente com o absurdismo do filósofo Albert Camus, cuja influência é evidente desde o início da HQ, que abre com uma citação do mesmo sobre o mito de Sísifo. Na lenda, o deus grego é condenado a empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, apenas para vê-la rolar de volta e reiniciar o ciclo eternamente. Essa "imagem" ressoa ao longo da história, não de forma literal, mas bastante clara.
Em determinado momento, um pastor narra para Cristo e sua esposa a história de um homem que carrega uma enorme pedra nas costas, além de outros objetos, como uma abóbora pendurada no pescoço e pesos nas mãos. Enquanto Cristo sente alívio ao ver o homem finalmente se livrar de sua carga, sua esposa questiona o motivo de ele ter escolhido suportar aquele fardo. Neste ponto, torna-se evidente para o leitor que a pedra simboliza Rosa, a filha com deficiência do casal, de forma diferente para cada um deles.
A metáfora da pedra é revisitada diversas vezes ao longo do roteiro, assumindo significados profundos, quase sempre associados à morte ou ao peso emocional que os personagens carregam incessantemente. Um desses momentos é vivido por Cristo, que em um dos trechos, necessita matar um animal em agonia com pedra, com a intenção de acabar com seu sofrimento. Apesar das poucas cores das páginas, Luckas trabalha bem o jogo de luz e sombra, trazendo ainda mais impacto para a cena.
Próximo ao clímax do enredo, o filho mais velho do casal retorna para casa, acompanhado de figuras misteriosas. Uma dessas figuras se intitula Sonhador, um mensageiro de Deus que fala com o mesmo através de sonhos. Ele afirma para o casal que chegou até ali com a missão de tirar um enorme fardo da vida de ambos. E é a partir deste ponto que o terror toma de conta das páginas de forma muito rápida.
Repleta de simbolismos e ilustrada de forma magistral, a HQ vencedora da categoria "História em Quadrinhos" do Prêmio Jabuti 2024 faz jus ao reconhecimento recebido. Com um roteiro envolvente que captura o leitor desde os primeiros quadros, "Como Pedra" entrega uma narrativa densa e emocional ao longo de suas 200 páginas. E, apesar da carga dramática que permeia a obra, culmina em um quadro que transmite esperança e alívio, encerrando a história com um sopro suave em meio à tempestade que a antecede.
"Como pedra"
Onde encontrar: comixzone.com.br
Quanto: 89,90