“O reggae é a música do povo, ele não é para se ouvir, é para se sentir. Quem não o sente não o conhece”. Essa frase dita por Bob Marley (1945-1981) resume o que o cantor e compositor pregou por meio das suas composições: mensagens de paz, amor e resistência.
Mais de quatro décadas após a morte do “pai do reggae”, suas ideias seguem ecoando ao redor do mundo por meio da difusão do gênero musical para muito além da Jamaica, onde Bob nasceu.
O ritmo, frequentemente com letras voltadas para temas sociais, políticos e espirituais, começou a ganhar o território cearense no início da década de 1970 e chegou aos ouvidos de Gianni Zion, então um estudante com 12 anos.
O rapaz gostava de escutar estações de rádio internacionais e seu pequeno aparelho tinha potência para isso. Em 1977, já fã do gênero, conseguiu comprar o primeiro disco de reggae, dando início a sua coleção de vinil.
“Quando verifiquei a história do início do reggae no Brasil, principalmente dos colecionadores, eu tive uma grata surpresa de descobrir que ninguém estava colecionando ou ouvindo reggae dessa forma naquela época (anos 1970). Eu posso considerar que, talvez, eu tenha sido a primeira pessoa a pesquisar e colecionar reggae nacionalmente”, se orgulha Gianni.
Em 1980, ele começa a ter seu primeiro contato com outras pessoas adeptas ao gênero, e mais tarde começa a compor música, no estilo soul, MPB e reggae. Já no final dessa década, resolve criar uma banda voltada ao reggae, anunciando a procura por integrantes no jornal. “Era uns classificados procurando músicos para formar uma banda de reggae bem autêntica no estilo jamaicano”, recorda.
A Rebel Lion nasceu em junho de 1990, sendo a pioneira de bandas de reggae cearenses. Sua estreia aconteceu em janeiro de 1991, e atualmente segue em ativa com 34 anos de caminhada. Além de fundador, Gianni é vocalista, arranjador e compositor. O mesmo chegou a viajar a Jamaica e aos Estados Unidos para pesquisar e comprar discos de reggae.
"As temporadas de show acontecia principalmente na Praia do Futuro, era um polo reggae muito importante na época, além do centro. Tínhamos também um show tradicional de tributo a Bob Marley, que a gente fazia todo ano. Eram eventos que, apesar de não ser apoiado pela mídia, a gente colocava mais de mil pessoas em cada show", afirma.
Bandas como Nação Regueira, Tribe of Lions, Donaleda e Alma Negra nasceram a partir de influência e ex-integrantes da Rebel Lion. Por volta de 1992, Gianni, ao lado de sua amiga Zumaika, marcam o pioneirismo dos programas de reggae na rádio aqui no Ceará, com projetos como "SkolReggae" na FM O POVO, "Reggae Night" e "Cidade do Reggae", na FM Cidade.
"A gente tinha uma boa audiência e recebia muita ligação dos fãs, de todos os lugares, que estavam surgindo naquela época. Foi nesse período que as músicas começaram a tocar e gerar toda essa geração de DJs que a gente conhece hoje aqui em Fortaleza", destaca.
O reggae aqui em Fortaleza, durante os anos 90, passava por uma certa instabilidade. Por um lado, estava ainda fortalecendo suas raízes, que foi impulsionada pela vinda da banda brasileira Tribo de Jah e o cantor Jimmy Cliff, primeiro artista jamaicano a pisar no Ceará.
Por outro, estavam chegando os fins dos programas de rádio, e o reggae começou a ficar estagnado, se encontrando em crise total no final dos anos 90 para o início dos anos 2000.
"Nessa época, a Rebel Lion e a Tribo of Lions promoveu um show em um estacionamento na praia de Iracema. O lugar foi localizado por dois parceiros meus, o César e o Bidela, e o show reuniu duas mil pessoas, gerando uma grande reviravolta no cenário", relembra Gianni Zion.
Futuramente, esse mesmo espaço se tornaria o Canto das Tribos (CT), primeiro clube de reggae de Fortaleza. Surgido em junho de 2001 — fundado por Gianni Zion, César e o Bidela —, o local foi palco de show para grandes nomes do gênero, nacionalmente e internacionalmente, e marcou a memória de uma geração diversa que curtia o estilo musical.
"Pode-se dizer que o reggae chegou mesmo a Fortaleza com toda a força no período do Canto das Tribos, que até hoje é considerado o grande momento do reggae cearense, marcando o início dessa história", afirma Gianni, que recorda que o lugar era muito democrático, abrigando pessoas periféricas e elitistas, e que seu fim chegou em 2004, mediante a uma campanha criminosa de difamação.
"Um TV da época, juntamente com um lugar de concorrência próximo do espaço, disseminou informações falsas como trafico, bandidagem, assassinato e tudo de ruim que possa imaginar. Tudo isso movido a questões comerciais e preconceituosas, levando ao nosso fim", finaliza.
"Foi através do Canto das Tribos que o reggae se tornou essa potência em Fortaleza, era a cada 15 dias festa lá, com lotação total. Essa época foi fundamental para o crescimento e a evolução desse cenário", relata Romero Jucá, proprietário do Reggae Club, surgido após o fim do CT.
A casa de show, que ainda segue na ativa, não foi o único a surgir após esse fim. Lugares como Kingston 085, JamRock e diversos outros entram na lista. Romero, também sufista, está atualmente escrevendo seu segundo livro, intitulado "Reggae Por Nós", que abordará a história e sua vivência no reggae cearense.
"O reggae cresceu muito, mas hoje beneficia só os DJs, as bandas foram ficando órfãs de espaço. Hoje conto nos dedos quantas bandas tem aqui em Fortaleza, precisamos resgatar esse movimento e crescer em conjunto", desabafa.
O Reggae Na Cena
Influenciada pelo rap e reggae que ouvia em casa desde pequena, a rapper cearense Má Dame, cria dos saraus de Fortaleza, vem ganhando destaque no cenário musical cearense com sua performasse única e underground de fazer música. "Na Cena", lançada em 2024 e produzida por Emiciomar, é prova viva dessa trajetória.
A música, que ecoa as ruas de Fortaleza e esteve presente até em campanha politica, dialoga com o dancehall, uma versão mais moderna e rápida do reggae, surgida nos anos 1980 e composta por batidas eletrônicas.
"Eu gosto muito da musicalidade do reggae e de dialogar com essa sonoridade, que ainda é uma das principais trilhas sonoras da minha vida. 'Na cena' é o que eu quis despejar de referência, com algo mais político e com metáforas e simbolismo dessa cultura", explica a rapper.
Mento, dub, lovers rock, reggae fusion, reggae roots são outros subgêneros, que assim como o dancehall, seguem populares.
Para Assun, educador, cantor, compositor e ex-vocalista da banda de reggae DonaLeda, o cenário atual do reggae fortalezense segue crescendo e dando protagonismo a pessoas que sempre são marginalizadas e invisibilizada.
"O reggae cresceu muito nas periferias, principalmente os eventos altos sustentáveis, que não dependem de contratantes e nem de casas de shows. A galera se organiza nas praças, nos sarau e em diversos lugares que esses jovens tem acesso", observa.
O Passinho do Reggae
O reggae A2 é a dança que comanda os cearenses, seja pelos corpos colados, os balanços dos quadris e o arrastado no pé, essa prática já é cultural dos também amantes do forró. Portanto, outra forma de dançar vem se popularizando entre os fortalezenses: O Passinho do Reggae.
Conhecido também como “Passin do Reggae” e “Reggae do Passinho”, a dança é uma febre nas redes sociais e é unicamente de Fortaleza. Criada em 2012, comprovando a influência dos Djs nesse cenário, a coreografia surgiu pelo DJ cearense Luis Thande, o DJ Tandinho, em parceria com o seu primo, DJ Regis Dekker.
No mesmo ano, com o intuito de compartilhar o passinho com o mundo, o DJ Tandinho decidiu publicar um vídeo com uma das coreografias no YouTube. O conteúdo rapidamente cumpriu uma parte do objetivo: alcançou mais de um milhão de visualizações, marcando o primeiro viral dessa dança.
A dança mistura elementos tradicionais do reggae jamaicano ao break dance e se destaca por ser uma dança mais livre, "para dançar solto". Os criadores também se influenciaram nas dançarinas Rita Maranhense e Adilene Lessa — Carioquinha —, que já dançavam "marcado" nas festas, numa versão inicial do passinho.
"Naquela época 70% das pessoas criticavam o passinho, dizendo que não era cultura. Hoje a galera está abraçando mais ainda, e isso é muito gratificante", afirma.
Dançarina e também cozinheira, Rita Maranhense admite que se sente privilegiada de contribuir com esse cenário e que já chegou a ter em sua casa mais de 20 pessoas querendo aprender o passinho.
"Eu sempre acreditei no reggae aqui em Fortaleza. Ainda existe muita discriminação, mas esses movimentos salvam vidas. Logo, logo essa galera atual ganhará reconhecimento pelas suas lutas e seus esforços, eles vão conquistar o topo", comenta.
Atualmente, os dois grupos de danças mais conhecidos em Fortaleza por promover o Passinho do Reggae são o Debocha Reggueiro e OOS Passinhos. Everton Yago, o Bully, diretor do OSS Passinho, conta que o grupo é independente, sendo formado por pessoas de diversas localidades.
"O grupo surgiu como uma brincadeira de jiu-jitsu, e o "OSS" significa originalidade, sinotia e sentimento pela cultura reggae. O nosso maior intuito era criar coisas diferentes em cima do que já existia. Essas coreografias são conexões, é uma cultura de paz", conta Bully, que agrupa mais de 25 pessoas no grupo.
"Surgimos com a intenção de ensinar o Passinho a quem tinha interesse de dançar nos bailes. Começamos a postar na internet que iríamos ensinar e vimos muita gente com vontade de aprender. Hoje somos 20 educadores e já conseguimos compartilhar nossa dança com mais de 1000 pessoas", conta Jéssica Sales, idealizadora e uma das instrutoras do Debocha Reggueiro. O coletivo ensaia duas vezes por semana e oferece oficinas quatro vezes no mês.
Essa sintonia entre a dança e o reggae é atravessada na vida de Walisson Rocha, conhecido como Buja. Ele, que é articulador social, produtor cultural e dançarino do Debocha Reggueiro, foi influenciado pelo gênero musical através de seu pai, que também dançava e chegou a larga o vício em drogas por conta da conscientização que o reggae pregou em sua vida.
"Essa minha relação é sobre ancestralidade e familiaridade. Frequentei muito baile de reggae e dancei muito o passinho, admirava muito inclusive. Foi esse ano que cheguei ao grupo, por uma oficina, e seguimos na luta, principalmente para romper com as barreiras do preconceito e ocupar espaços. A cena do reggae aqui é bem unida!", revela.
Buja também ressalta o fator social que o reggae proporciona na vida de uma pessoa periférica. "Esses movimentos me salvaram e nos salvam. Antes te faziam sentir como ninguém e agora você é alguém, você dança, toca, cria eventos, faz projetos, filma e edita um vídeo. É devolvido a nós essa autoestima. A gente aprende a existir e a resistir no reggae", completa.
O reggae feito por elas
Quando era gerente de loja, os pensamentos da empreendedora e DJ, Vládia Soares, não imaginava que o reggae seria algo tão presente em sua vida. Começou com o amor, em junho de 2017, quando ela conheceu Coka Vibration, conhecido como Dj Coka, que apresentou a ela todo esse universo.
Vládia já tinha tido contado com o reggae na infância, mas ainda tinha receios e certos preconceitos relacionado ao gênero, algo presente em sua família. Mesmo assim, o destino ainda estava preparando algo maior, pois em dezembro do mesmo ano que conheceu seu parceiro, ambos decidiram abrir um bar, intitulado Deixe Comigo.
O novo empreendimento transformou a vida de Vládia, que ressignificou suas questões com a cultura, criando uma conexão profunda que a fez mudar toda sua trajetória de vida.
"Essa cultura é um estilo de vida, pelo menos para mim. Você tem que viver o reggae, e isso é um processo de construção. Eu tinha muito medo de assumir que o nosso bar era literalmente de reggae, com o tempo, eu entendi que essa é a minha missão. O maior preconceito que a gente passa é esse mesmo, de vê o reggae em um lugar de marginalidade", reflete.
A empreendedora virou Dj, e o ano de 2018 marcou o seu sentimento pelo gênero, criando até um coletivo, o "Deixe com elas", em união com as Djs Indira Marley e Lady Luh. O objetivo era é reforçar a consciência e a importância do empoderamento feminino na cena regueira. As apresentações do coletivo segue acontecendo em programação fixa no bar.
"Eu achava muito linda a forma que as meninas tocavam e como elas passavam a mensagem reggae. Então comecei a produzir com elas, e questionava o porquê Fortaleza não tinha nada voltado para mulher. Chamei elas para fazer esse movimento e seguimos super engajadas. Hoje somos referências no cenário", afirma.
"As mulheres vieram para o reggae somar. A gente ver o show de diversos talentos femininos. Admiro a força que cada uma delas tem, cada uma com uma história de vida diferente. Elas chegaram no movimento e mostram muito bem o que realmente sabem fazer", reflete Rita Maranhense, um dos nomes por trás da criação do Passinho do Reggae.
Atualmente, Vládia Soares e seu companheiro Coka Vibration segue também com o projeto Sound System, uma cultura nascida no final da década de 40 na Jamaica, que promove encontros nas ruas para curtir diversas vertentes do reggae. A ação é uma alternativa para aqueles que não tem condições de frequentar as festas em clubes fechados.
"Fazemos terapia para poder sustentar aquela energia que a gente coloca ali. O nosso maior desafio é isso, é apresentar o reggae como ele é, um movimento que acolhe e que aceita todos. O reggae é um movimento periférico que dialoga com a juventude, tá dialogando com as periferias, as pessoas estão entendendo que somos potências também", conclui.
A arte em educar
Para além da música, o reggae impacta socialmente e transforma vidas. É o que garante Jhessy Mar, de 27 anos.
A dançarina, professora e produtora cultural é a criadora do Educa Reggae, um projeto localizado em Fortaleza que promove aulas diversas sobre a dança regueira, focando no "Passinho do Reggae".
"A dança, para mim, é um lugar de comunicação com o corpo, e o reggae é como um lugar de conexão. Quando iniciei minha pesquisa, ela veio acompanhada de muitos estigmas e preconceitos. Quis trazer o reggae para esse lugar da educação, por ser essa potência a ser ensinada, tanto em termos de musicalidade, como sociocultural do povo preto", explica.
Jhessy recorda que o ponto de partida dessa trajetória foi na graduação de dança. Lá, ela passeou por diversos gêneros antes de chegar no reggae. Um momento de educadora que marcou sua trajetória foi durante o estágio, em que ela atuou em escolas periféricas para crianças do sexto ano até o ensino médio.
"Comecei a inserir o reggae e pegou muito bem com as crianças, porque elas se sentiam muito representadas, afinal, eram escolas periféricas, então os seus pais e suas famílias escutavam reggae. Isso para mim foi sensacional, porque o reggae já estava virando outras palavras", relata, relembrando que escutava falas a associando a ensino de uso de maconha.
"As próprias crianças falavam: 'Tia, mas você fuma maconha?'. Falei, gente, ó, vamos lá. Por que as pessoas falam tanto sobre maconha? 'Eu não sei, tia', aí comecei a falar da história da ligação de Bob Marley e a religião rastafári, que utiliza a erva como conexão com seus deuses, e por isso a mídia associa ambos aspectos", conta.
Foram dois anos com a ideia de seu projeto em mente. Mas, foi só em 28 de fevereiro de 2023 que o sonho se tornou realidade. Jhessy começou com aulas gratuitas em uma sala no Porto Iracema das Artes, onde a primeira aula ministrada foi um "sucesso total".
O projeto foi crescendo cada vez mais e a jovem procurou um curso de produção cultural que foi um divisor de águas em sua vida, influenciando no nome que o Educa Reggae recebe hoje, que antes era só Aulas de Reggae.
"Entendi que a minha ideia nunca foi dar uma aula de passos, mas sim investigar esse lugar de você ter a sua própria dança. A princípio, a gente faz uma rodinha, conversa sobre a temática da aula e sobre o que é o reggae, tem essa relação de como se fosse uma terapia. O reggae é esse lugar de você ver pessoas, de criar conexões e romper a timidez", detalha.
As aulas acontecem das segundas às quintas-feiras, variando entre iniciante e iniciado para A2 e para o Passinho do Reggae. O público abrange jovens, adultos e idosos, transformando o lugar em algo bem diverso.
Além da programação fixa, o Educa Reggae tem nas quintas-feiras, no IFCE, o projeto Dançar e Lazer, com aulas totalmente gratuitas. "Fortaleza inteira está querendo saber o que é esse reggae. Estamos nesse movimento de se identificar com a nossa ancestralidade", finaliza.