"A literatura é um território de fabulação da realidade. A partir dela, conseguimos fabular o real", pontua o poeta Dalgo Silva. Esta relação descrita pelo cearense e a quinta arte clássica iniciou ainda na infância, com a curiosidade e o fascínio em folhear livros que tinham suas páginas preenchidas por letras e gravuras.
Antes de imergir nas páginas com textos escritos em prosa ou em versos, a "fabulação da realidade" era feita por Dalgo com os programas da década de 1990 que preenchiam a tela da TV. Naquele momento, ele não tinha tanto acesso a livros devido às condições financeiras da família e, de certa forma, o aparelho televisivo ajudava a criança nesse processo de imaginação.
Foi a matrícula na primeira série do fundamental que inverteu essa realidade. A biblioteca da escola pública que frenquetava em Tabatinga, distrito de Maranguape — local onde cresceu —, entregou o passaporte para as obras literárias, que captaram o interesse do jovem.
"A minha casa não era um lugar que eu pudesse encontrar livros. Os únicos a que tinha acesso eram os didáticos dos meus irmãos, que são mais velhos. Então, mexia nos livros deles", lembra o poeta. "Na biblioteca da escola, passo a ter acesso a outros livros e fico encantado. Como é possível existir um dispositivo que comunica pessoas de gerações e territórios diferentes?!", completa.
O engraçado, como ele define, é que a memória que mais marca essa época envolve poesia. Mas naquele tempo, a poesia para o pequeno leitor era como "um bicho hermético", difícil de compreender. "Lembro de uma cena em que pego os poemas, leio-os para os meus colegas, e finjo que entendo o que aqueles textos queriam dizer", compartilha.
O "spoiler" dessa lembrança é que anos depois, em 2024, Dalgo seria indicado e chegaria como finalista ao Prêmio Jabuti 2024, na categoria "Escritor Estreante - Poesia". Sua identificação com versos poéticos, no entanto, teve uma caminhada percorrida até chegar nesse ponto, como ele continua contando: "Aqueles textos de algum modo não conversavam comigo, porque eram poesias que, muitas vezes, não falavam da minha realidade. Ou seja, não conseguia enxergar meus coleguinhas, a minha família e as pessoas que eu conhecia dentro delas. Então, era um objeto fechado, hérmetico, difícil", aponta.
Porém, acrescenta: "Mas causava um certo fascínio. Como pode um texto, que tu sabe ler, mas ele é indomável porque é fechado? Só que fingia que compreendia o que ele estava dizendo e tentava explicar para meus coleguinhas".
Na adolescência, o cenário muda. Se quando criança os textos poéticos pareciam afastar Dalgo da escrita, na juventude autores como Adélia Prado o mostraram o contrário. O primeiro autor de quem o cearense lembra ter lido um livro e ter compreendido que poderia ser um escritor é do alemão Bertolt Brecht (1898-1956).
"Quando começo a ler os poemas dele, vejo que não precisava mais fingir que compreendia, pois ele estava falando da classe trabalhadora. E (fiquei): 'Poxa, é possível escrever poesia sem ser um bicho de sete cabeças, e escrever partindo do meu lugar, do meu território'", conta.
Outro poeta, dessa vez cearense, que também abriu este caminho foi Patativa do Assaré (1909-2002), a quem Dalgo fala com reverência sobre a "poesia sofisticada". "Ele consegue fazer uma leitura de mundo muito boa e é uma leitura que, de alguma forma, se aproxima do meu. É uma poesia feita com as palavras que são comuns, cotidianas", arremata.
A jornada de escrita começou, externalizando em palavras os versos que surgiam em sua cabeça. O levou a escolher, inclusive, o curso de Letras — não por desejar ser professor, mas pela proximidade com a literatura. Na Universidade Federal do Ceará teve aulas, inclusive, com a docente e escritora Tércia Montenegro — que também já esteve na posição de finalista do Prêmio Jabuti.
Curiosamente, entretanto, essa não era a graduação desejada pelo poeta. Cursar Psicologia lhe atraia mais e, utilizando a transferência interna, conseguiu entrar para o curso almejado. Ele supõe como essa vontade de se tornar psicólogo surgiu: "Acho que é o fato de algumas me enxergarem como uma pessoa que gosta de escutar. E eu acabo vestindo essa persona".
"Quando entrei em psicologia, as letras não saíram de mim. Sempre que tinha uma apresentação, um trabalho, dava um jeito de enfiar a literatura junto. Porque ela, de algum modo, era o que eu sabia fazer — não exatamente saber fazer, mas eu tinha desejo em fazer, então experimentava", afirma.
Esse pé na literatura se manteve por toda a graduação, se tornando até um conhecimento dos colegas. E também foi pautado em seu mestrado, sobre as bibliotecas comunitárias, falando especificamente da Livro Livre Curió — fundada pelo escritor Talles Azigon, mais um poeta com grande importância na trajetória de Dalgo.
Inicialmente, a ideia não era publicar um livro com os poemas. O maranguapense se enxergava como um poeta mesmo sem uma publicação, e não acredita ser necessário uma para consolidar essa afirmação. Seus textos eram para "homenagear os seus", aqueles que estão na vida dele. Narram poeticamente vivências cotidianas, que podem acontecer na rua ou no quintal de casa.
"Mas as pessoas sempre me perguntavam, inclusive alguns professores: 'Dalgo, quando é que tu vai publicar o teu livro?'. E (ficava): 'Nossa, as pessoas realmente gostariam de ler meus poemas em um livro'", lembra os questionamentos que recebeu durante a graduação. Naquela época, ele começou a ter cuidados para não perder os textos e na leitura deles.
Reunindo os textos, mandou para o prêmio Cepe Nacional de Literatura, que com a vitória, viabilizou a publicação do livro. Ele não acreditava que venceria, mas o desejo de outras pessoas lerem os poemas o incentivou. "Podem ser só as pessoas que estão na banca, mas mandarei para outros lerem, para saber o que acham. Vou deixar esses poemas ganharem pernas e encontrarem outras pessoas".
Após a publicação de "Meu amor é político", veio a inscrição no Prêmio Jabuti, no qual foi um dos finalistas da categoria "Escritores Estreantes - Poesia". A vencedora foi Bianca Monteiro Garcia, com o livro "Breve ato de descascar laranja". Dalgo pode não ter ganhado, mas para ele chegar até a final da premiação já foi uma vitória por estar representando sua cidade e estado. Ele, inclusive, receberá a medalha Capistrano de Abreu pela prefeitura de Maranguape.
Encerrando, após analisar sua trajetória até o presente, o psicológo faz um convite: "Que os cearenses leiam os cearenses. É óbvio que temos que ler toda literatura, mas acho interessante conhecermos nossos próprios territórios a partir das literaturas que têm sido produzidas aqui".
"As pessoas dos outros estados também precisam ler os cearenses, os nordestinos de um modo geral, pois estamos contando uma parte da história do nosso País. E acho importante nos reconhecer na produção dessas histórias", arremata. "O convite que faço é possamos ler nossas literaturas, se reconhecer e escrever", conclui.