"Renascer" — este verbo de ação apresenta variados significados no dicionário Michaelis, alguns deles parecendo convergir entre si: "tornar a nascer, reviver"; "adquirir nova vida, energia; renovar-se"; "ressusgir"; "adquirir novo estímulo ou impulso; revigorar-se". Em comum, todos apontam a atenção para a ideia de recomeço.
Na história ocidental, houve um período que ganhou o nome de "Renascimento". Esse momento, ocorrido entre os séculos XIV e XVI, sucede uma outra periodização histórica que carrega um nome curioso, a "Idade das Trevas". É um marco para o continente europeu, que passa a realizar trocas com o Oriente — comerciais e culturais —, resultando em novas tecnologias, por exemplo.
Mas renascer (esta palavra pode aparecer bastante por aqui) não precisa ser apenas algo macro, que envolve uma mudança na sociedade e marque historicamente a linha do tempo dos acontecimentos. Este processo de renovação também pode ser algo individual, pessoal e íntimo.
Mudar de carreira, migrar para outra área profissional ou curso da faculdade, até mesmo a mudança de uma cidade para outra com o objetivo de recomeçar: todas estas são formas de revigorar-se. Como pontua a psicóloga Viviane Cavalcante, é uma forma de amadurecimento pessoal.
Listando para ficar mais simples de compreender: você fez uma escolha no passado e, dentro dela, amadureceu e se aprimorou. No entanto, ao olhar para ela anos depois, percebe que não está mais imerso ou compatível com isso, e surge aquele sentimento de que deseja realizar outro propósito na vida.
"É como se estivesse alinhando dentro da sua vida todas as suas ações e se direcionando para realizar um propósito que hoje faz muito mais sentido do que anteriormente, considerando, inclusive, coisas que nunca havia sido pensadas em realizar", elabora a profissional.
Utilizamos Louise Veras como um exemplo. Desde a infância teve contato e uma forte ligação com linguagens artísticas, mas os caminhos da vida a levaram para o curso de Administração. Próxima a concluir a graduação, tomou a decisão de que apenas a finalizaria e depois se dedicaria à arte.
A história de Chico Araujo tem certa familiaridade, mas desenhada à sua própria maneira. Formado em Letras, lecionou como professor durante 40 anos, sendo a maioria no Centro Universitário Christus. Mas 2023 mostrou que este ciclo precisava ser finalizado para um novo ser iniciado, se dedicando a um talento nunca apagado.
Alan Uchoa trabalhou por 10 anos com fotografia, mas em determinado momento a profissão não fazia mais sentido para sua vida. A ruptura foi como o fim de um relacionamento, mas o novo começo na pintura está reconectando-o com o artista que sempre enxergou dentro de si.
Mas você, leitor, lida bem com as mudanças? Recomeçar pode trazer um sentimento de ansiedade, um frio na barriga por não saber o que esperar. Viviane Cavalcante explica que quando se trata de carreira, por exemplo, o sentimento pode ser quase como um luto. "O luto não é necessariamente pela morte de um indivíduo, mas a morte de uma função que você exercita", ressalta.
É sair de uma zona que você sabia lidar e ir para uma nova na qual não tem certeza de como será, exercendo novas competências e aprendendo um novo ofício. "Acaba sendo uma questão que pode deixar as pessoas fragilizadas", aponta.
Renascer é um passo de coragem e um momento de se conectar com seu interior, entendendo as necessidades internas. "É buscar uma forma autêntica (de renascer). Autenticidade não é pintar o cabelo de azul e ter coragem de sair na rua, é uma autenticidade de você com você mesmo. É entender 'o que eu quero?' e se mobilizar a partir disso", arremata.
Pintando um novo caminho
Se esta repórter definisse algo sobre Alan Uchoa, afirmaria que, profissionalmente, ele é movido por paixões.
Foi em um cursinho de pré-vestibular que se apaixonou pela fotografia, ao ter contato com as imagens produzidas por um colega de sala. "Perguntei como ele fazia, que câmera usava. Ele disse que fazia tudo sozinho: usava uma câmera powershot e o Photoshop, tudo sozinho", lembra.
Instigado, seguiu os passos do colega e comprou uma câmera igual, começando a fotografar. Se antes não tinha muita ideia de como funcionava e se seria possível capturar imagens como via em revistas, depois levou aquilo para o ensino superior no curso de Audiovisual e Novas Mídias.
"Sempre gostei de contar histórias e eu queria contar por meio da minha fotografia. Estudando no Cinema, consegui me aproximar dessa linguagem mais teatral e cinematográfica", desenvolve.
Durante a graduação, Alan conheceu outros fotógrafos e, a partir desses encontros e troca de experiências, descobriu o ramo que gostaria de trabalhar: uma fotografia mais artística. Não era fotografia publicitária ou de eventos que enchiam seus olhos e traziam emoções positivas para seu interior, era aquela mais artística e conceitual. "Sempre gostei da ideia de poder captar uma história, uma ideia; de imprimir o que tinha dentro da minha mente", continua.
"Desde pequeno escrevia histórias, música, tocava teclado, mas foi a fotografia que amadureceu junto comigo aos 18 anos e me abriu um horizonte no mercado, por mais que não tenha trabalhado nele (com eventos ou publicidade)", sustenta. "Ela me apresentou muitas pessoas do meio fotográfico", completa.
"Mas chegou um ponto em que não queria mais fotografia. Fiquei: 'Como assim não quero mais? Como assim não me deixa mais feliz?'. Foi um processo de dez anos me aperfeiçoando, comprando material, me atualizando de software e Photoshop; fazendo cursos, amizades", lista.
Antes, após terminar de fotografar, Alan ficava contente a ponto de querer chorar de felicidade, mas perdeu as cores e o brilho. O divórcio não foi fácil, a pergunta que se fez presente foi: o que fazer agora? O equipamento seria vendido, o marido e a família seriam comunicados da decisão. Mas e depois?
"Preciso de uma nova paixão. Preciso me apaixonar por alguma outra coisa", foi a decisão dele. Escolher a pintura não foi difícil. Na graduação, pintores já haviam sido referência para ele, como o italiano Caravaggio. Ele enxergou na linguagem artística uma forma de "moldar a realidade e contar ela do seu jeito", precisando apenas de um pincel e um quadro.
Escolher a pintura como sua nova paixão foi como se desmontar completamente e buscar uma nova forma de remontar. Antes Alan vivia no digital, com sua câmera e programas, agora, aprende em aulas dentro de um ateliê de Fortaleza o processo de criar a partir de um pincel.
"É um processo bem mais intuitivo e sentimental. Dá para sentir que o sentimento fala mais alto ali. Estou no processo de conhecer, mas toda essa desconstrução é muito legal", celebra. "Faz-me sentir vivo como artista", completa.
Mesmo que role uma cobrança aqui ou ali ao querer alcançar o mesmo patamar que havia construído durante 10 anos como fotógrafo, o cearense de 32 anos está indo no próprio ritmo e com planos para 2025, que já bate na porta.
"Espero conseguir já montar algum portfólio, encontrar o meu estilo e a minha linguagem na pintura. Espero conseguir chegar a algo similar do que tinha na fotografia", conclui.
Possibilidades no palco
Administração, Jornalismo e Medicina — as três opções de graduação surgiram para Louise Veras após um teste vocacional feito por uma psicóloga na escola. Jornalismo foi a primeira descartada por ela, não queria trabalhar escrevendo muito. Então, passou para Medicina. Durante um ano e meio, estudou em cursinhos para tentar ingressar no curso.
"Só que acabei pensando mais em trabalhar e ganhar meu dinheiro para ter minha própria vida. Fiz a prova da Uece para Administração e passei com uma nota muito boa. Fiz a faculdade inteira, conheci pessoas maravilhosas", memora.
Durante o curso, ela seguiu o caminho natural de um estudante universitário e buscou estágios, trabalhando em empresas de Fortaleza. Mas a vivência positiva na administração não apagou a veia artística que pulsa na cearense de 26 anos desde a infância. Louise ainda cantava e tinha a paixão pela a atuação - e fez curso de teatro quando criança). Ela, inclusive, se apresentou no Theatro José de Alencar (TJA) por volta dos 7 anos de idade. Ali, decidiu que queria aquilo para a vida.
"Quando você vai crescendo, escuta algumas coisas que desestimulam a continuar na vida artística", lamenta. Seus pais, que sempre apoiaram o sonho artístico, também a estimulavam a fazer um concurso antes para "ter o dinheiro fixo todo mês". "Quando entramos no mundo artístico, percebemos que não é assim que funciona. Temos que priorizar o lado artista, porque assim vão abrindo mais portas, vai conhecendo pessoas e fazendo network", completa.
Louise montou um plano: finalizaria a faculdade, fato que se concretizou com a aprovação do TCC no primeiro semestre de 2023, mas não trabalharia na área administrativa. Ao invés disso, se inscreveu para o curso do Curso de Princípios Básicos de Teatro (CBPT), do TJA, e entrou para a Casa de Vovó Dedé, onde teria a oportunidade de aprender a tocar instrumentos e praticar canto.
"Quando me inscrevi no CBPT não sabia se ia dar certo ou não, se conseguiria chegar no final ou não. Mas acho que o propósito de me manter firme, de fazer tudo acontecer, foi o que me levou até o final, apesar das dificuldades que apareceram durante o caminho", conta. O curso foi recentemente finalizado pela a graduada em administração, encerrando com o espetáculo "Entre Marés" no dia 7 de dezembro, apresentado no TJA.
Paralelamente, a música continuava também sendo trabalhada. As artes cênicas ocupavam as manhãs, e as aulas das músicas vinham pela tarde. Atualmente, faz parte da banda Academia Aralume, grupo que surgiu na Casa de Vovó Dedé, e recentemente fez sua estreia no primeiro show na Estação das Artes.
O renascimento de Louise, apesar de ainda estar no início, já está abrindo sua trajetória para diversos caminhos. "Sempre acreditei que tudo acontece no momento certo e que fazemos por onde. Temos que seguir nossos sonhos, se colocando nos lugares e fazendo cursos e workshops. Enfim, buscar ter contato com pessoas da área e aprender com elas. Talvez se tivesse começado a investir antes na carreira, não tivesse a maturidade que tenho hoje", arremata.
"Acredito que estou no momento e lugar certo, e com as pessoas certas", conclui.
Escrevendo recomeços
Em 1979, Chico Araujo se descobriu como intérprete e compositor, além de já carregar uma grande afinidade com a literatura, advinda do reduto familiar. Este talento, no entanto, só seria explorado mais de 40 anos depois.
Antes de pousarmos em 2024, é importante relembrar que durante essas quatro décadas, sua dedicação esteve em outra carreira. Quando descobriu o talento artístico, cursava Letras — não pelo interesse em ser professor, mas para entender como era o processo de composição literária. O destino, no entanto, já tinha reservado para ele o cargo de docente.
No caminho trilhado, passou pela educação de ensino fundamental e médio, até chegar ao ensino superior. “Sempre queria levar para os meus alunos as melhores informações, os melhores textos”.
“Comecei na faculdade Christus em 1995 — comecei a (lencionar) no ensino superior juntamente quando ela começou (a funcionar). Ela evoluiu muito, iniciou com o curso de pedagogia e administração, lencionei nesses dois cursos. Lógico, todo meu trabalho em qualquer um foi explorando linguagens de textos e escrita”, compartilha. Além das duas graduações mencionadas, ele também lencionou em Ciências Contábeis, Engenharia Civil e de Produção.
Talvez, leitor, você possa ter tido uma aula com ele, mas como docente ele era conhecido como Sérgio Araujo. A mudança aconteceu na virada que foca na carreira artística, não como a identidade secreta Clark Kent e o herói Superman, mas para representar esse renascimento que o compositor iniciou em 2023.
Retomando a arte, os 40 anos nunca foram completamente parados, apesar da frequência menor. Em 2007, por exemplo, realizou duas apresentações no teatro. Já em 2019, foi convidado para participar de um show da cantora Aparecida Silvino, no Theatro José de Alencar. Na ocasião, cantou com um de seus três filhos, Miguel Araujo — repórter do Vida&Arte.
A música, porém, não era a primeira opção cogitada para depois da aposentadoria. “Sabia que quando deixasse de lencionar, investiria na carreira de escritor. Tenho livros em processo de escrita, outros que já estão praticamente prontos, e estou dizendo no plural porque é mais de um. Fui escrevendo, não tive oportunidade de publicar ainda e fui deixando para quando houvesse”, explica, acrescentando a informação que em 2022 publicou uma obra de poemas.
Seguir como cantor e compositor foi uma ideia que começou a ser cultivada em 2020, após um convite de Luciano Franco, sugerindo que o poeta escrevesse letras para melodias que ele havia criado.
“Essa chamada dele para compor músicas com ele, e fazendo o caminho inverso, colocando letras em melodias existentes, trouxe uma outra luz: não preciso ficar somente na literatura, posso transitar pela música”, arremata. Chico, inclusive, demonstra um grande agradecimento aos artistas que conviveu e contribuíram de certa forma em sua jornada, como Mateus Viana e Gilmar Nunes.
“Quando venho definitivamente para a música e querendo de fato marcar minha presença — mas sem exageros, só dentro daquilo que me cabe —, estou consciente que tem um espaço para mim. E tenho consciência das minhas limitações, mas sei que muitas podem ser superadas com exercício, treino e maturidade que tenho hoje”, sustenta.
E conclui: “Para as leis brasileiras sou um idoso, tenho 64 anos. Para muita gente idoso já não tem mais espaço, é para estar se recolhendo e curtindo a aposentadoria, talvez com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar, como diria Raul Seixas. Não vejo dessa maneira. Meu momento na música é agora”.