"Muitos dizem que a comédia é superior à tragédia, e agora eu entendo o porquê", contou Matheus Nachtergaele em tom baixo, como se fosse uma confissão ou algo que ainda não tinha dito em voz alta. Filho do teatro mais dramático, ele conta que deve a Ariano Suassuna e Guel Arraes sua entrada na comédia, gênero que o emociona porque "só se faz com a intuição do trágico", causando empatia pelo avesso do mau destino.
Poucas horas antes da pré-estreia de "O Auto da Compadecida 2" em Fortaleza, o ator conversou com O POVO sobre sua emoção de estar ali, encarando aquela sala de cinema como um brilhoso palco circense, sempre reiterando sua gratidão pelo simbolismo atemporal que seu personagem firmou no nordeste brasileiro.
"João Grilo e Chicó acabaram indo morar num tipo de panteão da mitologia da cultura brasileira. [...] habitam uma região quase inconsciente onde moram Saci Pererê, Dercy Gonçalves, Grande Otelo, Gonzagão… O 'Auto' é construtor da brasilidade", diz emocionado. Falou ainda sobre a construção de uma Taperoá mítica "bem Tim Burton, bem Disney", a ausência de um texto original do Ariano Suassuna, as mudanças incorporadas pela tecnologia e as expectativas para a recepção. Confira a entrevista:
O POVO - Começo essa conversa perguntando sobre o seu 2024. Você foi homenageado no Festival de Gramado e esteve nas salas de cinema com o cearense "Mais Pesado é o Céu". Como é para você fechar esse ano celebrativo com a continuação de uma obra tão importante para o Brasil?
Matheus Nachtergaele - Foi um ano muito lindo. Teve "Renascer" que foi um sucesso absoluto. Teve Gramado… O Oscarito é o nosso Oscar, então eu fiz questão de receber e aceitar o meu merecimento. Teve "Mais Pesado é o Céu" viajando pelo mundo inteiro e a gente foi bem, dentro do tamanho do lançamento. Petrus Cariry é genial, um príncipe do cinema, filho do Rosemberg e a produtora é a Bárbara, irmã. Eles são uma trupe do cinema, uma família mambembe do Cinema Cearense. Ainda teve "Chabadabadá" no Canal Brasil, primeira série para streaming do Cláudio Assis e… O Auto da Compadecida se tornou, principalmente para os nordestinos, um filme de cabeceira. Em 2019 a gente decidiu fazer. O Brasil estava muito triste. A gente se reuniu, o João Falcão que é roteirista, ele propôs. "Vamos dar alegria de novo para as pessoas? Vamos voltar pro Auto? Pro João Grilo, pro Chicó, pra Rosinha…". A gente marejou… e a gente fez. Agora estamos estreando. Essas praças do nordeste são nossas preferidas. É no Nordeste que eu sou mais aclamado e reconhecido como João Grilo, o tempo inteiro, durante 25 anos.
OP - Você não teve medo de mexer com o clássico?
Matheus - Tive. Mas a gente fazer o segundo não macula o clássico. O clássico é o clássico. Dá medo sim porque o filme é de todos, são 25 anos de tanta gente vendo e revendo. As famílias têm DVD em casa, o streaming passa, a TV aberta passa, as crianças conhecem… Em algumas casas o Auto é o programa de domingo. O João Grilo e o Chicó acabaram indo morar num tipo de panteão da mitologia da cultura brasileira. São personagens altamente populares num sentido muito profundo, habitam uma região quase inconsciente onde moram Saci Pererê, Dercy Gonçalves, Grande Otelo, Gonzagão… Foram eternizados definitivamente através daquela primeira versão, que era série e filme feita pelo Guel Arraes em 1999. Se tornaram um dos degraus da brasilidade. O Auto é construtor da brasilidade. É desde sua escritura nos anos 1950, por Ariano Suassuna, a peça brasileira mais montada no Brasil. É a maior comédia da dramaturgia brasileira. Sim, tinha um frio na barriga de a gente voltar e não fazer bonito. O filme celebra, é uma festa. João Grilo e Chicó estão lá 25 anos mais velhos. A tecnologia veio para devolver ao Auto o seu tom teatral, a Taperoá não é mais uma locação, é uma Taperoá mítica que pode ser em qualquer lugar, bem Tim Burton, bem Disney. Todo mundo tem saudade. Me parece que foi um risco que a gente correu conscientemente e que valeu a pena. Depois do frio na barriga, veio um desejo incrível de honrar o meu melhor palhaço. Eu trabalhei muito para que ele ficasse bonito e eu acho que ele ficou. Se o primeiro Grilo era pura esperança, vicejante, esse esperto, esse homem muito comum, mas muito esperto, que sobrevive a cada dia aos podres poderes, agora ele é tudo isso, e mais uma resistência. Você vê no corpo mais envelhecido do Grilo, de mim, que ele sobreviveu, apesar de tudo, neste país. Se passa nos anos 1950, mas a gente fala sobre o aqui e o agora. Ainda há o coronelismo, mas também o poder das mídias, representado pelo vilão do Eduardo Sterblitch. Devolvemos várias coisas que o público já gosta e inovamos em alguns pontos. João Grilo volta aos céus, o homem simples volta a ser julgado pelos deuses. Ele é fã de Nossa Senhora, fã mesmo, mas dessa vez… O mal e o bem não estão fora do Grilo, mas moram dentro dele.
OP - Foi um desafio para você o segundo filme estar além do texto do Ariano Suassuna?
Matheus - O primeiro Auto já tinha a inserção de trechos de outras peças do Ariano, não tinha só o Auto da Compadecida pura e simples não. Tinha outras peças para aumentar o tamanho da história, principalmente para fazer a minissérie. Aqui também não é diferente. A personagem da Fabiula Nascimento, por exemplo, vem de outra história dele. Ariano mesmo era um cara que recolhia cultura popular e a alta cultura mundial para fazer suas peças, era um procedimento armorial, um procedimento de Ariano. Então João Grilo é Lazarillo de Tormes, da Espanha, ele é o Arlequim da Idade Média, ele é os criados de Molière, o maior dramaturgo cômico do mundo. As histórias como a de João Grilo existem no mundo todo. Toda cultura tem um proletário, uma pessoa muito simples, desfavorecida, mas muito vibrante e inteligente. Não mau-caráter, mas amoral, meio "robinhoodiana", que não tem o menor pudor em tirar dos poderosos que o massacram, uma figura arquetipal. Ariano bebia nessas fontes. Inclusive o João Grilo estava registrado em cordel antes da peça, ele vinha da oralidade nordestina, e depois que vai pro Auto da Compadecida e é registrado definitivamente na literatura brasileira. Chicó é do Ariano, o Grilo é do mundo. Os roteiristas, que são os mesmos que adaptaram da primeira vez, usaram o procedimento que Ariano usaria com histórias mundiais. Tem Plauto, tem Goldoni e tem Ariano. Vocês vão perceber que é bem parente do primeiro, a família de Ariano pirou, parece que foi escrita por Ariano. Claro que a gente não quer competir com a genialidade do poeta, mas eles ficaram muito emocionados, e isso nos alegrou e aliviou. O que mais me alegrou foi conseguir voltar a fazer meu melhor personagem cômico. Antes de ser chamado para o Auto eu fazia dramas e tragédias, mas foi através do Guel, do Ariano Suassuna e do João Grilo que eu me tornei um ator cômico. Muitos dizem que a comédia é superior à tragédia, e agora eu entendo o porquê. É um pouquinho mais difícil porque a boa comédia só se faz com a intuição do trágico. Ela causa empatia pelo contrário, pelo avesso. A comédia é para falar tudo aquilo que a gente não quer, não deseja para nós mesmos, e para que a gente possa rir e se aliviar do mau destino. João Grilo nasce sem um bom destino e vai lutar todos os dias da vida por um bom destino, como a maioria dos brasileiros e das pessoas do mundo todo. É muito forte, é engraçado, mas o fundo é social. É uma denúncia que nos faz lembrar constantemente que no mundo da desigualdade, no mundo da direita extrema, no mundo do capital desenfreado, a gente deixa para trás pessoas lindas, como João Grilo e Chicó.