Com páginas deste caderno dedicadas a retrospectivas de música, cinema, literatura e TV, por que, então, uma específica para o Ceará? A verdade é que talvez fosse necessário uma edição do jornal inteira para abarcar essa produção artística e cultural, que extrapola os limites delimitados para cada gênero. Entre efemérides, comemorações, inaugurações e partidas, o ano de 2024 ressignificou conceitos e incorporou novos nomes ao portfólio do que é tido como cultura cearense. Manifestações, homenagens, lançamentos e tendências que fogem do esperado figuram entre os acontecimentos que preencheram os 366 dias do ano. Rememore os altos e baixos que marcaram o cenário artístico do Estado.
Entre avanços e cobranças
No campo das políticas públicas, o ano foi marcado por avanços atrelados a cobranças cada vez mais contundentes por parte da classe artística. Em maio de 2024, ocorreram diversas manifestações de artistas do Ceará direcionadas à Secretaria de Cultura do Estado (Secult-CE), devido aos atrasos no pagamento dos editais realizados com a verba proveniente da Lei Paulo Gustavo (LPG). Ao todo, foram 22 editais anunciados no dia 24 de agosto de 2023 pelo Governo do Estado e pela Secult-CE, que somavam R$95 milhões em recursos distribuídos. Até maio de 2024, a classe artística relatava um período de 10 meses sem retorno. Na última atualização, realizada pelo O POVO em 29 de julho de 2024, o repasse dos recursos no cenário estadual estava em 23% do total.
Em abril, também foi divulgado o Novo Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), que visa retomar obras paradas, acelerar reformas em andamento e realizar novos empreendimentos, com investimento total de R$1,7 trilhão. Com a medida, o Estado foi selecionado para receber equipamentos culturais em 15 cidades e quatro projetos de engenharia para a recuperação de patrimônios culturais, como um museu para a Festa do Pau da Bandeira, em Barbalha.
Mirando a premissa de descentralizar o acesso à cultura, em novembro, o Governo do Estado do Ceará, por meio da Secult-CE, realizou o lançamento do programa Ceará Criativo. Segregado em três eixos — Plataforma de Formação, Plataforma de Negócios e Programa de Mobilidade Artística — o programa contempla artistas de diferentes linguagens, como música e circo. Com itinerância em dez municípios cearenses, o programa realizou 26 formações em quatro meses de desenvolvimento, abrangendo localidades como Acaraú, Guaramiranga, Icapuí, Maranguape, Quixadá, Russas, Salitre, Senador Pompeu e Tururu.
As sete décadas da UFC
Eleita a melhor instituição de ensino superior do Norte e Nordeste do Brasil pelo ranking Times Higher Education (THE), a Universidade Federal do Ceará (UFC) completou 70 anos de fundação em 2024, com um legado que atravessa o tempo.
Como parte das comemorações, a edição 2024-2025 do Anuário do Ceará, realizado pela Fundação Demócrito Rocha (FDR) e promovido pelo Grupo de Comunicação O POVO, homenageia as sete décadas da primeira instituição universitária do Estado, com uma edição especial e um capítulo dedicado à UFC.
Ao longo do ano, também foi consolidado o projeto “Caravana UFC 70 Anos”, que, em parceria com O POVO e a FDR, percorreu 52 municípios cearenses, aproximando a universidade das comunidades e destacando o impacto de seus egressos, pesquisas e projetos de extensão. O resultado foi consolidado em 20 documentários, um livro-reportagem com mais de 300 páginas e uma exposição com 300 fotos.
Ainda em dezembro, mês oficial das comemorações, a instituição realizou a entrega da medalha UFC 70 anos, dedicada a 14 personalidades cearenses que se entrelaçam com sua história. Entre elas, a presidente institucional e publisher do O POVO, Luciana Dummar, foi agraciada com a medalha, em reconhecimento à sua atuação jornalística e ao legado deixado na imprensa.
"Esse é Sérvulo Esmeraldo"
No ano em que Servulo Esmeraldo completaria 95 anos, o Centro Cultural do Cariri abriu suas portas para a exposição “Esse é Sérvulo Esmeraldo”, uma homenagem ao multiartista que dá nome ao espaço. A exposição reúne 62 peças que abrangem xilogravuras, arquitetura em metal e litogravuras. Com curadoria de Dodora Guimarães, presidente do Instituto Sérvulo Esmeraldo e esposa do artista falecido em 2017, a exposição consolidou os vínculos entre o artista e o equipamento. À época, o Vida & Arte publicou um caderno especial relembrando a trajetória do artista, sua relação com o Crato e as ressonâncias de sua vida e obra ao redor do mundo.
Ademais, o ano foi marcado pelo retorno da escultura “Le Femme Bateau” para a Ponte dos Ingleses, na Praia de Iracema. A escultura cinética feita em fibra de vidro e aço inox havia sido atingida por uma ressaca marítima em 2018. Sob promessas de restauração desde meados de 2021, a devolução para seu local original aconteceu após um intervalo de 7 anos.
Despedidas
“Eu faço pintura como quem escreve cartas de amor”, disse Azuhli em seu último poema publicado nas redes sociais. E, de fato, o ano foi marcado pela perda de personalidades que deixavam transparecer o tanto de amor que havia em seus ofícios.
Como a artista plástica Azuhli, que faleceu em 15 de maio. Nascida e criada em Fortaleza, Luíza Veras adotou Azuhli como pseudônimo, um anagrama de seu próprio nome. Em suas obras, a artista escolheu retratar diversos corpos femininos, em sua forma e sentimentos reais, fora dos “padrões” estéticos, utilizando cores fortes e vibrantes nas telas. Revigorando conceitos de imagem e beleza, a artista também era integrante do Conselho Consultivo de Leitores do O POVO.
No dia 3 de julho, os cearenses foram notificados sobre a morte de Cristiano Pinho, um dos guitarristas mais aclamados do Estado. Durante mais de 25 anos, fez parte da banda de Fagner e participou de mais de 15 álbuns do cantor, sendo diretor musical do disco “Fortaleza” (2007). O músico faleceu aos 59 anos, após uma década de luta contra um câncer.
Na dramaturgia, no dia 4 de outubro, Emiliano Queiroz faleceu aos 88 anos. O artista, nascido em Aracati, morreu no Rio de Janeiro, após uma parada cardíaca. Com mais de 70 anos de carreira, 80 participações em novelas e mais de 300 personagens ao longo da vida, Emiliano foi precursor da radionovela no Ceará. Em junho deste ano, o ator havia concedido uma entrevista ao Vida & Arte durante a abertura da exposição “Emiliano Queiroz - De Aracati para o Mundo”, que esteve em cartaz no Museu da Fotografia de Fortaleza. O dramaturgo faleceu enquanto o equipamento cultural nomeado em sua homenagem, o Teatro Sesc Emiliano Queiroz, permanecia fechado desde a pandemia da covid-19. Sob promessas de reabertura, o equipamento aguarda uma nova sede, próxima ao Mercado dos Pinhões.
Os 80 do pessoal do Ceará
Lançado em 1973, o disco “Pessoal do Ceará – Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem” , responsável por firmar na indústria fonográfica as vozes de Ednardo, Rodger Rogério e Téti, alcançou seus 51 anos em 2024. Por ventura, o ano de 2024 também foi de comemorações pelos 80 anos de diversos membros que integram o movimento cultural que voltou os olhos da indústria nacional para a música do Ceará. Mais do que celebrar o movimento, o ano foi de homenagens a três potências que, vivas, seguem moldando e edificando o fazer cultural cearense.
Aquariano, o cantor, compositor, físico e ator, Rodger Rogério abriu as comemorações no dia 28 de janeiro. Entre sucessos imortalizados e canções ainda não apresentadas ao público, Rodger relembrou sua trajetória em show no Cineteatro São Luiz, presenteando a si e aos fãs.
De forma similar, a cantora Téti também recebeu como homenagem um show no Cineteatro São Luiz, intitulado “Téti 80 Anos - Ave Mãe da Canção Cearense”. O espetáculo reuniu mais de 18 artistas para homenagear Téti, além da participação no palco de sua filha Flávia Rogério e sua neta Júlia Fiore.
Também aos 80 anos, o arquiteto e compositor Fausto Nilo foi homenageado pela União Brasileira de Compositores (UBC) com a Medalha UBC, honraria que reconhece as criações musicais de artistas brasileiros. O compositor foi devidamente celebrado durante o ano, sendo a principal homenagem do ciclo carnavalesco de Fortaleza, além de tema de diversos outros grupos, como o bloco Luxo da Aldeia, com o título “80 Carnavais”.
Nos palcos
Trazendo nomes como Fábio Jr, Paula Toller, Jão e Simone, a casa de show Iguatemi Hall inaugurou no estacionamento do shopping em abril deste ano. Ao longo do ano, o espaço foi ponto de encontro para públicos diversos, desde o show que uniu Lô Borges, Beto Guedes e Flávio Venturini até a turnê “Encantado” de Silva.
Em novembro, o Festival Elos retornou à Praia de Iracema, congregando os públicos de Gabi Nunes, Mulher Barbada, Iara Pâmella e Vanessa A Cantora, e trazendo como carro-chefe as apresentações de Alceu Valença e Liniker. Esta última, inclusive, marcou a passagem da turnê “Caju” por Fortaleza e foi contabilizada como o maior público da carreira de Liniker.
Ainda no campo dos shows, a terceira edição do Festival Zepelim aconteceu em agosto e foi marcada pelo retorno triunfal da Banda Uó. Com treze horas de música, o festival contou com shows de 13 artistas brasileiros e trouxe nomes como Julia Mestre, Marina Sena, Seu Jorge, Yago OProprio e Pabllo Vittar com seu batidão tropical.
35 anos do Vida & Arte
No dia 24 de janeiro, a plataforma de cultura do O POVO celebrou 35 anos de uma trajetória de múltiplos olhares, marcada pela superação dos limites entre o erudito e o popular.
Como marca contínua de um jornalismo transversal, além dos 35 anos, o Vida & Arte também celebrou a marca de 100 mil seguidores na plataforma do Instagram.
No ciclo comemorativo, o caderno estendeu suas ações para o Festival Zepelim, por meio do espaço "Vida & Arte 35 Anos — Azuhli da Cor do Amar", que, na terceira edição do evento, homenageou também a artista visual cearense Azuhli, falecida em maio deste ano.
O ano também consolidou projetos como o Guia Vida & Arte, que reúne em edições mensais as melhores dicas para aqueles que visitam Fortaleza ou para fortalezenses em busca de novas experiências.
De galerias a ateliês
Com foco na difusão da arte contemporânea nordestina e brasileira, a Cave Galeria inaugurou em agosto de 2024, entrando no circuito de galerias fortalezenses. Funcionando de forma itinerante desde 2020, neste ano, além da oficialização como galeria comercial, o espaço tem realizado ações e eventos que servem como ponte entre destaques da arte brasileira e o público.
Entre as estreias de 2024, o Cuadro Ateliê surgiu da necessidade de um espaço de criação livre e estudo. Idealizado pelos artistas visuais Camila Sombra, Sofia Hernandez e Lucas Esmeraldo, o ateliê oferece sessões de desenho com modelo vivo, oficinas envolvendo pintura e desenho com artistas locais e cursos fixos.
Além dos recém-chegados, o ano foi de intensificação dos movimentos de diálogo por parte dos artistas e galeristas, que cada vez mais abrem seus espaços de trabalho para encontros de instrução, experimentação e visitas, como as edições oferecidas pelo Ateliê dos Pocinhos.
Novos nomes
Entre partidas e recomeços, o ano também foi frutífero na escalada de novos artistas. Natural de Cedro, no Ceará, a cantora Camaleoa vem se destacando no cenário independente de Fortaleza, resgatando o pop cearense em uma mescla que envolve MPB, soul e rock.
Em meio às capas do Vida & Arte, também esteve a história de Bruno Carvalho, cearense de 33 anos que tomou conta de vários espaços de show da cidade por meio de covers da cantora paraense Joelma. Também foram capa do caderno o grupo SamBomja, que refresca o samba cearense a partir da essência do bairro Bom Jardim; a artista visual Bia Mourão que reúne linguagens unindo o crochê à pintura à óleo; e o Eduardo Show da Vida, que fez da cadeira de rodas seu palco.
De galerias a ateliês