Na terça-feira do dia 3 de dezembro, o The New York Times publicou a própria lista dos 10 melhores livros de ficção e não-ficção. No topo, estava "All Fours", de Miranda July. Lançada em maio de 2024, a obra retrata uma artista de 45 anos que se despede da família por duas semanas e meia para uma viagem de negócios, mas toma a decisão de ficar em um motel de beira de estrada na cidade ao lado e tem um caso com um funcionário de aluguel de carros.
Quase como um romance de formação para mulheres na menopausa, o livro de Miranda July virou "De Quatro" no Brasil pela tradução de Bruna Beber, lançado ainda em 2024 pela Amarcord, selo do Grupo Editorial Record. A narradora vai se redescobrindo além da maternidade e do casamento de forma suave, sem aquele frenesi contemporâneo contra o patriarcado.
"As mulheres com quem eu saía geralmente tinham a minha idade, isso era bom. Mas os homens sempre tinham que ser mais velhos do que eu, porque se tivessem a minha idade, ficava muito óbvio o quanto eu era mais poderosa e isso era um desestímulo para nós dois. Os homens precisavam de uma vantagem", reflete a personagem anônima do livro de Miranda July.
A autora faz a excelente escolha de não soltar nenhum detalhe da vida profissional. Tudo que ela deixa escapar é que a protagonista é "quase famosa", o que nos faz manter a atenção na trama divertida e erótica, e nos impede de formar qualquer julgamento, sempre mantendo de curiosidade.
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Com 318 páginas, "De Quatro" explora maternidade, menopausa, monogamia, e outros assuntos que norteiam o despertar da meia-idade. "Se o nascimento fosse ser jogado energeticamente para o ar, nós envelhecíamos enquanto subíamos. No auge da nossa ascensão, éramos de meia-idade e então caímos pelo resto de nossas vidas, toda a segunda metade. Cair pode levar o mesmo tempo, mas não é nada como subir", pondera a narradora.
No best-seller, a protagonista é mãe de Sam, uma criança criada de forma neutra em relação ao gênero por escolha dos pais. Durante o percorrer da história, é perceptível como o amor e o medo são representados na relação da mãe com a criança. "Mas era improvável que Sam sentisse minha falta, afinal o que os olhos não veem o coração não sente. (...) Depois de duas semanas e meia, era provável que eu tivesse que me apresentar de novo para minhe filhe, e esse era o tipo de risco mais doloroso que alguém pode correr na vida", devaneia a protagonista.
A obra foi o gancho perfeito de um assunto que há tempos martelava na cabeça da jornalista que escreve este texto. O livro não trata a linguagem não-binária como ponto principal, nem perto disso, porém tratar a criança com gênero neutro por escolha dos próprios pais é, no mínimo, interessante. Nos Estados Unidos, essas mudanças já vêm se tornando pauta.
Em certo diálogo da protagonista com outra mulher, a narradora deixa claro que defende a criação de sua criança de forma não-binária. "Você tem uma menina?", a mulher pergunta, e a protagonista de "De Quatro" prontamente diz, internamente, "não atribua gênero a minha criança".
Essas crianças criadas forma neutra em termos de gênero já foi conceitualizado: "theyby" ou "non-binary baby" (bebê não-binário). Nesse estilo de criação, os pais não usam pronomes "ele/ela" ao se referir a criança e adaptam roupas e brinquedos para não terem qualquer especificação de gênero. É um termo e um movimento novo, portanto, há críticas a esse sistema, acusando-o de ser exageradamente "woke" - gíria definida pelo dicionário Oxford como "estar consciente sobre temas sociais e políticos", comumente utilizada de maneira pejorativa.
"Tradução também é cultura"
Indo para outra categoria da literatura, em "Salmo Para um Robô Peregrino" (2021), ficção científica de Becky Chambers, a personagem principal Dex é um monge não-binário que serve chá e usa os pronomes "they/them" ("eles", em tradução livre para o português). A escolha de personagens não-binários também acontece no livro "Quarta Asa", fenômeno da fantasia romântica escrito por Rebecca Yarros.
Os livros citados foram traduzidos do inglês para o português e, por uma escolha das editoras, a linguagem não-binária brasileira foi utilizada com o intuito de manter a maior semelhança com o texto original. Como diz o tradutor Fábio Fernandes em nota da edição do livro de Becky Chambers, "tradução também é cultura".
"A língua-alvo precisa encontrar uma maneira de preservar a intenção da língua-fonte", afirma. "Dex recebe sempre o pronome they, que em portugues é traduzido literalmente como 'eles'. Mas como o uso dessa tradução consagrada poderia causar confusão, optamos pelo pronome 'elu', que vem sendo usado nos últimos anos como alternativa não binária aos pronomes clássicos 'ele' e 'ela'. Buscamos respeitar a linguagem neutra das personagens mantendo a coerência do texto, mas sabemos que essas questões estão sempre abertas para discussões", argumenta Fernandes.
Como retrata o tradutor, essas questões são tópicos presentes nas discussões sociais. Quando o cantor Djavan divulgou um dos seus shows em Barcelona com a frase "últimes entrades", foi arrastado para a discussão do gênero neutro por pessoas que não sabiam que a frase, na verdade, estava escrita em catalão, idioma local.
É evidente que, no Brasil, o pronome neutro não é tão bem aceito quanto em outros países. Os países de idioma inglês vem se familiarizando cada vez mais com a linguagem. Desde a década de 1970, movimentos feministas e LGBTQIA+ debatem sobre a estrutura binária da linguagem, com argumentos de que a linguagem padrão masculina contribui para invisibilizar a mulher e a população queer.
Filósofas como Janice Moulton e Adele Mercier fazem parte desta discussão desde o século XX, quando fornecem exemplos de que a linguagem masculina não pode ser considerada neutra por ser generalizadora, ou seja, quando termos masculinos são utilizados para abarcar diferentes gêneros, quem escuta ou lê certas frases pensa com mais frequência em referentes masculinos do que em formas alternativas explicitamente neutras.
A classe pesquisadora brasileira vem avançando nos estudos sobre o tema. Porém, mesmo que existam livros acadêmicos e dissertações que englobam o assunto, ainda é difícil encontrar literatura de ficção em português que utilize linguagem não-binária sem colocá-la como foco principal do enredo. Um dos poucos exemplos é o livro "Pequene Prince Bi", de Antonio Isuperio, cujo objetivo central é trazer a linguagem não binária em uma releitura de "O Pequeno Príncipe", de Antoine de Saint-Exupéry.
Segundo Isuperio, Pequene Prince Bi é "um registro de liberdade aos corpos que têm historicamente a sua existência negligenciada, sobretudo na infância". Além de Isuperio, a literatura de Cristina Judar também é exemplo da utilização da linguagem não-binária em HQs e livros.
O que pensa a classe pesquisadora?
Cristina Judar foi um dos nomes citados por Gustavo Paraíso ao comentar sobre a linguagem neutra na literatura. Gustavo é mestrando em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (Progel/UFRPE) e pesquisador em Linguística do Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais (NuQueer), pelo CNPq.
"Obviamente, quando a gente vai traduzir para o português, a gente também tem que manter a integridade da obra. Então, por mais que, no português, a gente sabe que gramaticalmente não temos ainda uma convenção de qual pronome não-binário utilizar, a gente tem as aproximações que conseguimos fazer", argumenta o pesquisador.
Em artigo feito em parceria com o doutor em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP) Iran Melo, publicado no site da organização Marco Zero Conteúdo, Gustavo argumenta que, diante da persistência dos números de violência contra a comunidade LGBTQIA, a proibição do uso da linguagem não-binária é mais um ataque sobre o existir dessas pessoas.
Segundo relatório da agência de pesquisa internacional Trans Respect, 321 pessoas trans e de gêneros diversos foram assassinadas entre 1 de outubro de 2022 e 30 de setembro de 2023, número que se aproxima dos 327 casos notificados no ano anterior. Com 236 casos, a América Latina e o Caribe relatam novamente o maior número de assassinatos entre todas as regiões.
"Falar sobre o uso da linguagem não-binária é iniciar um discurso disruptivo sobre os modelos vigentes na sociedade contemporânea. Estamos colaborando para que mais pessoas tenham a sua subjetividade reconhecida e, com isso, possam existir através da e na linguagem", manifestam os autores.
A estudante Amanda Monteiro da Silva é uma pessoa que vivencia a não-binariedade. Mestranda em Estudos da Linguagem na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRP), tem especialização de Psicopedagogia e Coordenação Pedagógica.
"Existem maneiras de se utilizar a linguagem neutra em um livro ou texto sem se utilizar de palavras como 'elu/filhe/bonite'. Alguém que em vez de escrever menino/menina, pode escrever criança, escrever docente em vez de professor, discente em vez de aluno, se utilizando assim de um tipo de linguagem não-binária geralmente chamada de 'neutra'. A linguagem inclusiva de gênero pode acontecer de diversas maneiras, menos ou mais disruptivas", explica Amanda.
Além de Gustavo e Amanda, o doutor e mestre em Literatura pela Universidade Federal do Ceará (UFC) Lúcio Flávio Gondim considera este tema extremamente complexo. "Quando tratamos de linguagem neutra, de mudanças culturais, de urgências sociais, vai chegar um momento em que opiniões não vão dar conta da questão, que vai se impor e as pessoas vão ficar ou contemporâneas àquele fato ou ultrapassadas", diz Lúcio Flávio.
Ao comentar sobre o assunto, Lúcio relembra da campanha eleitoral recente para prefeito de São Paulo, em que uma artista, ao cantar o hino nacional, incluiu a linguagem neutra: "Foi um prato cheio para os políticos de direita, conservadores, e aos próprios políticos de esquerda. O candidato, o presidente estava nesse momento, todo mundo teve que se colocar contra rapidamente, porque é fazer uma transgressão no maior ícone nacional em termos de língua: o hino nacional".
"Não restam dúvidas de que a recepção disso é a pior possível nesse momento do País. Pode ser que em algum momento, em futuro em médio ou longo prazo, isso possa ser modificado, possa ser melhor entendido, mas hoje a linguagem neutra é tida como uma chacota e também como uma grande pedra no sapato de intelectuais, políticos, artistas", afirma.