"Eles chegam tocando/ Sanfona e violão/ Os pandeiros de fita/ Carregam sempre na mão". Em "A festa dos Santos Reis", Tim Maia descreve parte de uma das principais manifestações populares que une religiosidade e cultura. A canção de 1971 pode ser entendida como parte de uma memória e homenagem do músico à tradição popular da Folia de Reis, também conhecida de Reisado.
Passeando pelas ruas, caminhando pelas praças e convidando os moradores a participarem das festividades, os grupos formados por mestres, foliões, cantadores e brincantes realizam, em diversas partes do Brasil, o evento que integra o calendário do país desde o período colonial.
O momento retrata uma das eventualidades mais importantes do cristianismo: o nascimento do Menino Jesus e a chegada dos Três Reis Magos a Belém. A Folia de Reis demarca as festividades natalinas - iniciadas na véspera de Natal, no dia 24 de dezembro, e encerradas na primeira semana do novo ano -, sendo concluídas no Dia de Reis, datado em 6 de janeiro.
"O Reisado é uma expressão que possui características ligadas ao sagrado, mas que, no entanto, também é profana na sua forma de 'rezar festando', na celebração da amizade, do ato fraterno e solidário de juntar-se para o brincar e de ser feliz com o outro", diz a pesquisadora, professora de danças tradicionais e doutora em Artes Lourdes Macena.
E completa: "Diante disso, o mais certo seria dizer que ele está configurado no ato de religiosidade popular, que ocorre para além da igreja enquanto instituição em si e se converte em um ato do ser amoroso, religioso de qualquer religião que propague o amor e o bem, favorecendo um reconhecimento para o maior de todos os filósofos do amor, inclusão e perdão que foi e é Jesus".
Transições do Reisado em Fortaleza
A representação da percurso dos Reis Magos - Baltasar, Gaspar e Belchior - indo ao encontro do Menino Jesus foi desempenhada ao longo dos anos em diversos modelos. Hoje, reduzida e com menos presença diante do fluxo da cidade, o evento, entretanto, segue influente entre os novos brincantes.
"(Nos anos 2000) foram chegando pessoas para participar, estudantes, músicos, artistas, poetas… E aí a gente foi agregando essas pessoas e fomos organizando vivências, tanto no interior do Estado como na Capital. E, no que a gente havia aprendido, a gente ia repassando para essas pessoas novas no grupo", recorda o brincante Rodrigo de Paulo Oliveira.
Pedagogo formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Rodrigo é membro do Brincantes Cordão do Caroá desde a fundação, em 2003. No posto de Rei do grupo que nasceu no bairro Benfica, ele conta que, no início, o Cordão do Caroá chegou a ter cerca de 45 integrantes que visitavam as cidades do interior do Estado, como Sobral e Quixeramobim.
Ele explica que existia uma aproximação com o Reisado dos Irmãos, de Juazeiro do Norte, sendo eles os responsáveis por passar os conhecimentos para os membros do Cordão do Caroá. "O grupo, que também era conhecido como Discípulos de Mestre Pedro, foi quem nos abraçou, quem abraçou os jovens estudantes e moradores do bairro... E nos receberam em suas casas para repassar as músicas, como é feita a brincadeira, a entonação e os momentos de cada peça", recorda.
Atualmente com 21 membros, o grupo mantém uma relação de proximidade e amizade com mestres no interior do Ceará na busca de fortalecer a cultura do Reisado: "a nossa proposta é evidenciar e difundir a cultura popular tradicional cearense como forma também de conhecimento e de aprendizado, além de valorizar o que existia e que já existe há muito tempo, saberes que estão em nós e a gente não aproveita isso".
Também da Capital, o Grupo Miraira realiza, entre as variadas formas artísticas, o Reisado com apreço e admiração às tradições populares do Nordeste há mais de 40 anos. "O que nos chama a atenção para fazermos parte, atuar e manter anualmente esta brincadeira é a força que ela contém como legado ancestral do ciclo natalino e que nos revela a ancestralidade local. Além disso, o que mais nos motiva é tudo o que é ensinado, de criatividade, movimento artístico, singeleza, força coletiva comunitária e forma ímpar devocional de agradecer por tudo o que foi recebido na vida de cada um por meio da dança brincante tradicional", argumenta Lourdes Macena.
Ela relata que um dos objetivos do grupo é manter a prática "de forma conjunta com a juventude", ou seja, dar continuidade "as imaterialidades da tradição popular é praticando-a, sendo assim, brincarmos de reisado é a nossa forma de contribuir para as festividades".
Reisado caririense: na alma e de coração
"No Cariri cearense, ao lado dos Reisados de Congo, mais numerosos na região, aparecem, em alguns municípios, os Reisados de Caretas ou de Couro, tanto na sua forma tradicional, tendo como núcleo a família dos Caretas, quanto na modalidade de Reisado de Bailes, no qual também aparecem os Caretas". (Barroso, 2008)
Lourdes Macena cita "Reisado: Um Patrimônio da Humanidade", do pesquisador cearense Oswald Barroso (1947-2024), ao descrever a festividade tradicional nordestina que ganha destaque na região do Cariri. Ela comenta que a Folia de Reis na localidade faz "sua vida nas ruas de vários municípios do Cariri e resiste" com o passar do tempo.
Em Barbalha, Juazeiro do Norte, Crato, Araripe, Bela Vista e Salitre, a região do Cariri é "a mais rica em Reisados", como já havia afirmado o escritor em sua publicação. "Juazeiro é um lugar encantado, nada está parado, todo dia um encantamento novo, uma descoberta. Fazer arte e rezar fazem parte dos preceitos do Padre Cícero, então, você vê arte em tudo", menciona Francisco Ferreira de Freitas Filho, gestor do Ponto de Cultura da Associação dos Voluntários para o Bem Comum (AVBEM).
Nascido em Fortaleza, Di Freitas, como é conhecido, recorda que, ao chegar no Cariri, uma "erudição enorme" o encantou, admitindo junto a montantes que o Reisado da região é uma das mais admirados do País. "Cultura não é um enfeite de se colocar na parede, é algo vivido que dialoga com a vida da pessoa e o lugar onde ela está. Então, o que me aproximou da tradição do Reisado e me motiva para acompanhá-los foi a liberdade e o amor que vejo nesses fazedores de arte", afirma.
Educador, músico e pesquisador, Di relembra que seu primeiro contato com as manifestações do Reisado no Cariri foi com o Mestre Cícero, de Missão Velha, após vê-lo fazendo campanhas pelas ruas de Juazeiro junto à banda Cabaçal. "Foi então que descobri que eles são a grande escola, são os livros vivos", diz.
Citando Mestres do Reisado caririense, como Maria do Horto, Mestre Mauricio, Grande Artesão e Mateus de Reisado de Juazeiro, o observador das brincadeiras do interior do Estado explica que mesmo com a tradição ter "muita visibilidade, mecanismos, editais, reconhecimentos por universidades", as gratificações da festividade, no entanto, ainda são distantes daqueles que fazem o evento perdurar ao longo dos anos.
"Existe ainda uma quantidade enorme de excluídos que não conseguem acessar esses benefícios, grupos, mestres e mestras que não têm acesso a editais, nem sequer à saúde, moradia, trabalho… A tradição continua pendurada como enfeite nas paredes, que se tira a poeira apenas nos eventos", sustenta Di Freitas.
Santos Reis na Cachoeira do Fogo
Reisados recriam a visita dos Reis Magos ao Menino Deus. Visitação festiva, brinca-se a céu aberto. Releio Oswald Barroso (1947-2024) sobre antigos mestres dizendo da diferença entre cortejos até Belém e da volta para casa.
Reisados de guerreiros figurariam reis e embaixadas a caminho de Belém. Reisados de caretas, encaretados = mascarados, a volta. O disfarce é para escapar da fúria de Herodes, a querer saber onde está o divino encarnado. É reisado de caretas o do mestre Zé Augusto, da Cachoeira do Fogo, em Independência, Sertão Central do Ceará. O sapateado é um elevado sotaque do corpo de homens brincantes na região.
Eu os vi dançar em Tauá, no Festival dos Inhamuns - Circo, Bonecos e Artes de Rua, começo dos anos 2000. E no pátio e jardim do Theatro José de Alencar. É tão bonito o sapateado (que 'escutamos' nos pés, mas se desenha no corpo todo) quanto o jardim portátil na cabeça, com flores de plástico nas máscaras feitas em pvc.
Oswald intitula "Um sertão de rabequeiros, sapateadores e contadores de histórias" o capítulo sobre a Cachoeira do Fogo no livro "Sertão da Tradição - O vasto mundo dos assentados", publicado em 2010, parte do Projeto Arte e Cultura na Reforma Agrária, Incra Ceará, coordenado por Silma Magalhães.
Zé Filho (de José Rosa da Silva, o mestre Zé Augusto, hoje com 88 anos, e de Dona Maria, que era cantadeira do reisado) diz da apresentação dos três reis caretas, boi e burrinha na Malhada Grande, em Novo Oriente, e no sítio Araújo, em Independência, dias 6 e 8 de janeiro, a convite de quem fez promessa aos Santos Reis. Paga-se com festejo.
Ponto de vista da jornalista Izabel Gurgel, cronista do O POVO
Agenda de apresentações
XVII Mostra Estadual Ceará Ciclo Natalino 2024
Quando: domingo, 5, das 10 horas às 15 horas
Onde: Complexo Cultural Estação das Artes (rua Dr. João Moreira, 540 - Centro, Fortaleza)
Gratuito
Grande Cortejo no Crato
Quando: domingo, 5, a partir das 16 horas
Onde: ruas do Crato
Cortejo Cultural do Ciclo de Reis
Quando: domingo, 5, e segunda-feira, 6, a partir das 16h30min
Onde: Praça Dirceu Figueiredo (rua São Pedro, s/n - Salesianos, Juazeiro do Norte)
Ciclo de Reis em Juazeiro
Quando: domingo, 5, a partir das 17h30min
Onde: Terreiro da Mestra Margarida (rua da Matriz, 227 - Centro, Juazeiro do Norte)
Reisado Discípulos de Mestre Pedro
Quando: domingo, 5, a partir das 17h30min
Onde: Praça José Geraldo da Cruz (avenida Prefeito Carlos Cruz, 1338 - Franciscanos, Juazeiro do Norte)
Terreirada das Tradições Populares
Quando: segunda-feira, 6, a partir das 18 horas
Onde: ruas de Uruoca
Terreirada do Cordão
Quando: segunda-feira, 6, a partir das 19 horas
Onde: Reitoria da UFC (avenida da Universidade, 2853 - Benfica, Fortaleza)