Na linha tênue entre arte e ciência, a Ilustração Botânica representa uma combinação indissociável de profissões que, para muitos, parecem distintas. Jogos de luzes e sombras, detalhes por meio do pontilhismo e fidelidade às cores são algumas das premissas mantidas por aqueles que se dedicam a catalogar novas espécies, ilustrar publicações científicas e disseminar, por meio da arte, a flora universal.
"Desde pequena, minha vida era baseada em desenhar nos cadernos da escola, em vez de estudar", diz Maria Alice de Rezende, 63 anos. O que Alice não esperava era que, futuramente, sua vida estaria fundamentada na combinação entre a ciência e a ilustração. Licenciada em Artes Plásticas pela Universidade de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Alice soube da ilustração botânica por meio de um professor durante a graduação. À época, com 40 anos, não acreditava no futuro que seu orientador vislumbrava. A área, pouco conhecida pelo público geral - desperta curiosidade e, a cada dia, ganha novos profissionais e interessados.
Agora mestre em Botânica pela Escola Nacional de Botânica Tropical (ENBT), Alice disponibiliza a mescla refinada entre talento e rigor científico para os pesquisadores do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ). Atuando na catalogação de novas espécies e ilustrando projetos de dissertação e tese científicas, afirma não saber dissociar sua versão de artista da versão de pesquisadora. "É impossível ser um bom ilustrador se você não entende de botânica e taxonomia, pois é impossível ilustrar bem sem conhecer a morfologia da planta", elucida.
Além de uma vida dedicada ao aperfeiçoamento, parte dos conhecimentos de Alice vieram de uma infância regada a brincadeiras em meio a hortas e matagais. Natural de Paracambi, município serrano situado no Rio de Janeiro, ela credita sua prosperidade como ilustradora ao olhar observador que desenvolveu para as plantas desde pequena.
Apesar da vocação e do reconhecimento recebido com a publicação de suas ilustrações em artigos nacionais e internacionais, Alice não deixa de esconder os percalços da profissão. Variando entre meses com diversas encomendas e outros com escassez de pedidos, a instabilidade financeira do estilo de "vida freelancer", atrelada ao atendimento de um mercado oscilante, por vezes, é uma contrapartida.
Frequentemente, entre as dúvidas que recebe exercendo a docência, Alice se depara com o questionamento sobre a finitude da ilustração botânica diante do avanço das câmeras digitais. Apesar de não saber os desdobramentos com o avanço da inteligência artificial, Alice se mantém firme na premissa de que sempre haverá espaço para a ilustração botânica.
"Você não tem como isolar a árvore sozinha em uma foto, excluindo seu entorno. (...) E, por fim, a nitidez e precisão de uma ilustração científica em nanquim não se comparam à de uma fotografia", defende.
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PIONEIRISMO
Em 2004, Alice recebeu uma bolsa de estudos da Fundação Botânica Margaret Mee/FBMM, que lhe proporcionou um curso de aperfeiçoamento durante cinco meses em Londres. Vinte anos depois, os frutos vieram. Em 2024, ganhou o prêmio Jill Smythies de Ilustração Botânica, concedido pela Linnean Society of London. A honraria reconhece artistas botânicos por sua excelência em ilustrações publicadas no auxílio à identificação de plantas, com ênfase na precisão e na representação fiel de características diagnósticas. Alice é a primeira ilustradora da América Latina, na área da Botânica, a receber esse prêmio.
Paralelamente, ela vem desenvolvendo um trabalho com a reserva Grootbos Nature Reserve, em Cape Town, na África do Sul. Na localidade, documenta em aquarela espécies nativas que estão em processo de reintrodução à flora local.
Acompanhada de botânicos de diversas nacionalidades, a experiência em Cape Town deu origem a um livro homônimo e a uma exposição permanente na The Hannarie Wenhold Botanical Art Gallery.
Aquarela versus Nanquim
Na Ilustração Botânica há possibilidade de execução com grafite e, preferencialmente, com aquarela (pigmentos dissolvidos em água) e nanquim (corante preto). A ilustradora botânica Maria Alice Rezende explica a diferença no uso - revelando que as predileções dependem tanto de aspectos científicos quanto artísticos.
"O nanquim é mais rápido e eficaz, o que é um ponto importante para os pesquisadores, especialmente quando têm prazos curtos. A aquarela é mais cara e exige mais tempo de trabalho, porém é uma delícia de ilustrar com ela. Então depende muito do objetivo, mas no final, a aquarela é valorizada mais como arte e o nanquim, para a ciência", detalha.
Do hobby ao ofício
No campo da educação, fora do eixo de pesquisa carioca, são muitos os estudantes que se envolvem com a possibilidade de unir arte e ciência. É o caso de João Augusto Castor Silva, mineiro que reside e estuda em Capão do Leão, no Rio Grande do Sul. Graduando em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), ele conheceu a ilustração botânica por meio do Núcleo de Ilustração Científica (NIC), coordenado pelo professor João Ricardo Vieira Iganci.
Compartilhando uma trajetória semelhante à de Alice, ambos precisaram do olhar externo de um orientador para despertar uma vocação que sempre esteve ali. Com uma mãe artesã e acostumado a acampar durante a adolescência, João se sentia pertencente à natureza antes de se tornar ilustrador.
Atualmente, em trabalho conjunto ao NIC, o estudante tem se dedicado à disseminação da ilustração botânica para além dos limites definidos pela pesquisa universitária. Por meio de oficinas realizadas em escolas de ensino básico e médio, João comprova que o interesse pelo tema é crescente. "A partir do momento em que o tema é abordado fora da sua própria caixinha (no caso, entre ilustradores e alunos), já se nota um interesse maior entre os jovens", expõe.
Ao relatar sua profissão para os discentes, entre os pontos positivos, João destaca a possibilidade de trabalhar com algo que exige paciência e experimentação, em um mundo marcado pelo imediatismo. "Trabalhar com a natureza me afeta positivamente. É exatamente nesses tempos de aceleração que se torna crucial exercitar o tempo, a paciência, a observação e a experimentação", reflete.
Além de atuar como ilustrador freelancer, João atende como tatuador desde os 14 anos. Conciliando projetos entre arte e pesquisa, ele defende o perfil do artista múltiplo. "Não dá para ser artista de uma coisa só. Para mim, seria impossível trabalhar apenas com ilustração botânica e não produzir outras formas de arte que fogem à ciência", finaliza.