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Entre o charlatanismo e a seriedade: vale a pena fazer mentoria artística?
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Entre o charlatanismo e a seriedade: vale a pena fazer mentoria artística?

Especialistas discutem como mentorias artísticas têm se tornado problemáticas ao se alinharem a processo de coaching
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Foto: carlus campos 1801vida.jpg

É possível ensinar o fazer artístico? Esse é o questionamento que surge quando ouve-se o termo "mentoria artística". Uma tendência que ganhou força durante a pandemia - principalmente por meio de coaches - marca presença de modo intenso no mercado literário como um serviço oferecido a quem quer dar início a carreira.

"A mentoria nada mais é do que uma aula particular. Esse termo se torna popular na rede social, justamente na leva da questão de coaches. Então, ela ganha esses contornos", explica Wilson Júnior, professor de escrita literária. "Uma aula que pode ser especificamente sobre discussão de temas, orientação de obra, de discussão de texto", exemplifica Wilson, que também é o fundador da Editora Escambau.

O escritor cearense Mateus Lins destaca que a finalidade de uma mentoria de arte é "repassar técnicas e conhecimentos adquiridos por um artista com vivências no mercado da arte". Ele, que também é professor universitário, assegura que a formação é focada em "ensinar caminhos possíveis para a produção da arte".

Wilson pontua, inclusive, que tratar a mentoria como algo desvinculado do ensino pode confundir a compreensão para quem esse serviço é ofertado. "Acho que o termo serve para cumprir uma função, que normalmente é mercadológica. Se você diz que é uma aula particular, ela se torna uma coisa mais banal e simples. Quando você chama de mentoria, e ganha esse contorno mais profissional, respeitoso, e aí você pode muitas vezes cobrar mais caro".

Para o professor de escrita, essa diferenciação através do preço a ser cobrado pelo serviço, pode se tornar problemática. "Eu acho que a mentoria no ensino artístico se torna um problema quando ela começa a vender sonhos, quando, por exemplo, um autor que alcançou um determinado status com sua carreira, promete no ensino dele que você vai alcançar esse mesmo lugar social".

Além da promessa de lucro, Mateus Lins alerta para formações que prometem a possibilidade de escritores em ascensão conseguirem se sustentar através da venda de suas obras. "Temos muitos autores que sonham viver de escrita, mas esse é um caminho dificílimo e que poucos conseguem. Mesmo autores muito bons, premiados e com vários livros publicados e aclamados pela crítica, às vezes, não conseguem viver exclusivamente da escrita".

"E existem mentorias que vendem o sonho de viver da escrita ou de se tornar um best-seller em tempo recorde. Acho esse ponto problemático. Uma mentoria deve, antes de tudo, situar o mentorando na realidade do mercado e oferecer auxílio na produção do material artístico", argumenta Mateus, que também é advogado.

Ele relembra que a produção artística exige "paciência por ser um processo de produção longo". O escritor cearense ainda alerta: "qualquer proposta que oferecer um caminho rápido para o sucesso, desconfie".

O surgimento de mentorias milagrosas que asseguram 'mundos e fundos' a autores iniciantes é algo produzido pelo próprio mercado literário, na opinião de Wilson Júnior.

"Para você entrar num espaço desse, você tem que ser agenciado, para você ser agenciado, você tem que conhecer alguém dentro da própria editora", elucida.

"Então, a gente criou um ecossistema dentro do mundo da literatura que o autor, se ele quiser conquistar espaços, na maioria das vezes, tem que desembolsar muito dinheiro, para poder alcançar esses espaços", continua Wilson, que também é o editor da revista literária Escambaunática.

Ele explica que muitos talentos acabam passando despercebidos por não terem recursos financeiros para publicar suas obras. Ainda que existam prêmios literários que forneçam oportunidades para jovens escritores, essas honrarias não dão conta da demanda literária, conforme Wilson Júnior.

Além disso, ele salienta que o mercado de literatura no Brasil transformou o escritor em um produto, tornando o cenário ainda mais grave para quem deseja ingressar na área. "Então, essas mentorias, dessa forma, são só um sintoma desse mercado doente que se tornou a literatura".

"Creio que prejudica quando de fato nós estamos em vez de ensinar arte, difundir, divulgar, facilitar a arte, nós estamos vendendo sonhos", reitera Wilson. "E isso dificulta não apenas 'pros' artistas que estão buscando se refinar e se aprimorar. Mas também de dificultar o trabalho de outras pessoas que estão tentando fazer esse trabalho de difusão da arte da literatura e da cultura, porque não temos como competir com a promessa de sonho".

Outros olhares

Em que momento da carreira um artista deve procurar uma mentoria? Mateus Lins indica que a busca pelo serviço seja feita sempre que surja a necessidade de uma perspectiva diferente a respeito do projeto que está sendo produzido. "Quando o artista precisar de uma segunda opinião, ou de um acompanhamento especializado sobre determinado trabalho que esteja desenvolvendo".

"Se for uma mentoria séria, trabalhada com profissionalismo, pautada na realidade do mercado e sem falsas promessas, pode valer a pena investir a depender do objetivo do artista que a procura", argumenta o escritor e professor universitário. O especialista em escrita literária Wilson Júnior salienta que é importante procurar profissionais cuja reputação seja conhecida.

"Isso pode ser alguém cujo trabalho ele conheça, que já tenha sido seu professor, ou que tenha sido recomendado por outras pessoas", orienta o também editor da revista literária Escambanáutica. Diversos fatores devem ser considerados quando um artista decide investir em uma mentoria, segundo Wilson.

Além de levar em conta o profissional que irá realizar o processo, é interessante colocar na balança o resultado esperado. "Por exemplo, se você deseja aprofundar um processo formativo após um curso de contos, um mentor especializado nesse gênero pode ajudar. Ele pode ler seus textos, discutir suas ideias, recomendar autores relevantes (sejam canônicos ou contemporâneos) e fornecer ferramentas que ajudarão a desenvolver sua escrita. Esse tipo de orientação pode ser valiosa para quem deseja construir uma carreira na escrita", indica.

Wilson ainda aponta que a mentoria não é indicada para quem leva a literatura como hobby, no caso de escritores. "Por sua natureza personalizada e específica, a mentoria é mais adequada para quem tem objetivos claros, como desenvolver um projeto específico — por exemplo, escrever um livro — e precisa de orientações, ideias ou experiências que apenas aquele profissional pode oferecer".

"Antes de contratar uma mentoria, recomendo pesquisar a fundo sobre o profissional. Verifique suas credenciais, a experiência de outros alunos e, se possível, participe de uma aula aberta para entender a metodologia de ensino", continua o professor de escrita.

"Avalie se essa abordagem é compatível com o seu estilo de aprendizado e suas necessidades. Se você já teve contato com o ensino desse profissional e sentiu melhorias significativas na sua escrita, é um bom sinal de que a mentoria pode ser um investimento válido", conclui Wilson.

Já para quem quer oferecer o serviço de mentoria, a orientação é ter uma "bagagem robusta" de experiência profissional e conhecimento, de acordo com Mateus Lins. "Quando falamos em jovens artistas como mentores, salvo a exceção de grandes prodígios, não enxergo a possibilidade de eles oferecerem uma mentoria sem uma bagagem robusta. Para se qualificar como mentor é necessário vivência, estudo, bagagem profissional e reconhecimento".

Wilson Júnior também aconselha a busca por entender a como repassar conhecimento da melhor maneira possível. "É importante compreender que o domínio de uma técnica ou área artística específica, por si só, não torna alguém automaticamente apto a transmitir esse conhecimento a outras pessoas".

"Uma boa maneira de iniciar é oferecendo oficinas ou formações gratuitas, como um teste. Assim como você experimentou e aprendeu ao se tornar artista, o mesmo deve ser feito no ensino", orienta o editor e escritor. "Testar metodologias, receber feedback e ajustar suas práticas são etapas fundamentais para se desenvolver como educador. Entrar no mercado cobrando valores altos sem nenhuma experiência prévia ou conhecimento sólido sobre o ensino pode ser visto como uma prática pouco ética".

Para o também professor de escrita, as mentorias artísticas tem potencial para desenvolver melhor o cenário brasileiro. "No entanto, ainda enfrentamos o desafio de que cursos de escrita são frequentemente caros e permanecem inacessíveis para muitas pessoas", lamenta Wilson.

"Quando se trata de mentorias individuais, o cenário se torna ainda mais elitizado, sendo um serviço acessível quase exclusivamente à classe média e alta", continua o autor. "Apesar disso, a formação artística, o estudo aprofundado de uma arte, é fundamental para o desenvolvimento de qualquer profissional ou entusiasta da área. Investir na educação artística, seja como aprendiz ou como professor, é essencial para a construção de um ambiente mais inclusivo e diverso no campo das artes", finaliza.

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