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Entrelaçar o mundo: instituições dão assistência à população trans com arte e acolhimento
Vida & Arte

Entrelaçar o mundo: instituições dão assistência à população trans com arte e acolhimento

Instituições cearenses utilizam linguagens artísticas - como a moda, a fotografia, a literatura e a dança - para incentivar saberes e novas perspectivas de existência da população trans
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Vida Victória e Maria Leonete, do coletivo Mães da Resistência (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Vida Victória e Maria Leonete, do coletivo Mães da Resistência

Sem saber colocar a linha na máquina de costura, Ana Beatriz Gomes começou a estudar moda como uma forma de reconstruir a vida. Aprendeu a manejar a agulha que atravessa o tecido, num movimento contínuo até formar os pontos que se transformam em uma nova peça. Encontrou na área uma ponte que a levou até a gerência de vendas da loja Utopia, localizada no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC).

Ao receber as pessoas no estabelecimento, vive uma realidade que um dia foi um sonho a ser desenhado. Nascida no interior de Beberibe, distante 82 km de Fortaleza, mudou para a Capital aos 20, após concluir o ensino médio. "Sempre me identifiquei como mulher travesti (como enfatiza, é uma identidade política usada para ressignificar a marginalização imposta pela sociedade). A gente quando nasce não descobre, tenta se entender, porque a gente é diferente de cada ser. A gente tenta criar essa capa de agressividade para as pessoas não tentarem violar nossos corpos e direitos, isso é muito difícil", relata.

Ainda no início da fase adulta, viveu em São Paulo por oito anos, onde estudou e terminou o processo de transição. "Primeiro me formei para ter conhecimento e depois buscar o que eu queria para mim: minha identidade pessoal. Foi uma luta colocar meus seios, minha bunda, até chegar ao RG e responder civilmente como uma mulher".

Beatriz retornou para o Ceará em 2010, quando descobriu o curso de costura oferecido pela ONG Casa de Andaluzia por meio do Centro do Referência LGBTI+ Janaína Dutra. Ao se deparar com o anúncio em janeiro, mês do Dia Nacional da Visibilidade Trans - comemorado na próxima quarta-feira, 29 -, viu a possibilidade de novos caminhos após momento que considera um declínio. "Fui mais pelo café da manhã e pelas passagens, porque eu sabia que ia ter café e, com o dinheiro das passagens, ia voltar para casa para comprar meu almoço", conta.

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Nos cursos básicos de estilismo, aprendeu o ofício da costura e ganhou instrumentos para iniciar um trabalho. "O impacto da Andaluzia foi a transformação radical. Saí da prostituição e consegui hoje estar sendo vista", destaca. Entre as mudanças, ela ressalta a empregabilidade. "Eles me deram a oportunidade de entrar no mercado de trabalho novamente, já mulher trans, negra, periférica, com todo o estigma do preconceito porque nossos corpos são objetificados. É difícil não ter essa inclusão de emprego, ainda é muito pouco em Fortaleza", reforça.

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Aos 47 anos, segue com os estudos em Administração e é uma das diretoras da Casa de Andaluzia. Também é uma das líderes da Utopia, descrita como "a loja mais afetiva de Fortaleza", onde mais de 80 artesãos cearenses expõem em modelo colaborativo com o objetivo de fortalecer a economia criativa. O projeto surge da feira de empreendedorismo da ONG e mostra a maneira em que, assim como demais projetos citados ao longo deste caderno, o contato com a arte representa um novo ponto de partida.

"Eu não levantava nenhuma bandeira, sempre falava que era carreira solo, porque os movimentos sociais são muito falhos e não concordava com as regras. A Andaluzia para mim é uma família, foi a minha segunda casa, não estou mais sozinha. Abriu portas inimagináveis, que eu jamais pensei que conseguiria reabrir na minha vida. Mas quando a gente quer, a gente consegue, pela resiliência e força de vontade", arremata Beatriz. (Lara Montezuma)

 "Elas vieram para revolucionar a moda": ONG em Fortaleza oferece capacitação por meio da costura

"É fraternidade, é amor, é união". A definição do coordenador logístico Mário Henrique Almeida reflete o propósito do projeto Costurando Vidas, iniciativa da Casa de Andaluzia que soma mais de 20 turmas formadas e 600 vidas transformadas. A instituição, localizada no bairro Benfica, em Fortaleza, promove o apoio e capacitação da população LGBTQIA .

O programa é um dos principais braços de uma entidade cujo esboço foi realizado há 32 anos, nos jardins do Theatro José de Alencar (TJA). Alguns educadores ensaiavam um espetáculo de dança com crianças do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e chamaram a atenção de Javier Garcia, turista espanhol que estava a passeio no equipamento. Ao voltar para a Espanha conseguiu, como vereador, arrecadar dinheiro para comprar o espaço que abriga a Casa de Andaluzia, inicialmente nomeada como Associação de Solidariedade aos Meninos e Meninas de Fortaleza.

Por volta de 2002, eles decidiram desenvolver um projeto de costura para dar suporte financeiro aos custos da casa. "Com o passar do tempo, o Javier foi vendo a necessidade de algumas travestis, mulheres trans. As meninas vinham para cá só para lanchar, da rua, não tinham onde dormir à noite", explica Mário. Começaram a ser criadas, então, turmas específicas para mulheres em situações de vulnerabilidade social e mulheres trans.

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As aulas acontecem na sede, espaço que reúne mais de seis ambientes. Em um deles, logo na entrada, há o registro em imagens de ações como espetáculos, rodas de conversas com integrantes e reuniões com lideranças comunitárias. Outro guarda 2 mil livros, resultados de doação, enquanto o andar de cima é reservado para a sala de ensaios de dança - utilizado pela companhia Estrelas da Rua, proveniente da própria ONG, e dividido com os alunos do Instituto Compartilha - e a sala de costura.

Nesta última, onde acontece o Costurando Vidas, as paredes são preenchidas com croquis e as estantes possuem uma variedade de rosa, roxo, azul e laranja em linhas. As alunas recebem instruções de professores que também já estiveram no lugar de aprendizes, como uma cadeia em sequência. "Já foram formadas mais de 20 turmas, mais de 600 alunas já passaram pela casa. É um projeto bonito, porque, como as meninas falam, é uma família. A gente não dá o curso, o diploma e 'tchau'. A gente tem contato com elas. Cada vez que a gente faz um evento, um desfile, quando tem oportunidade de empregabilidade no mercado, a gente convida elas. Elas são muito agradecidas pelo que aconteceu", elabora o educador.

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Para o funcionamento, a instituição recebe o apoio da prefeitura de Málaga, cidade na qual o fundador nasceu, e conta, há três anos, com o suporte da ONG espanhola Manos Unidas. Ao falar sobre a questão financeira no Ceará, Mário afirma que é difícil manter financiamento para além de projetos esporádicos e cita como exemplo positivo o apoio de mandatos públicos.

"A gente participa dos editais, mas para manter a casa", cita. O montante também é importante para viabilizar os desfiles, realizados como encerramento de cada curso de costura. O último aconteceu no dia 4 de janeiro, na Estação das Artes, com 30 looks, cada um desenvolvido por uma aluna. Para ele, que ajudou a pavimentar os primeiros passos da associação, é o resultado de uma ideia que ramifica. "Fico emocionado porque a gente já viu muitas histórias. Muitas não se identificam com a moda, a gente busca outros ofícios. É gratidão, carinho, prosperidade. A gente fica feliz em ver as pessoas bem. Elas vieram para revolucionar a moda", finaliza Mário. (Lara Montezuma)

Novas perspectivas

Novo curso básico de costura começa em fevereiro com foco em pessoas trans, migrantes e egressas do sistema prisional. As inscrições devem ser anunciadas na última semana de janeiro. Para 2025, outra novidade: o projeto ganha expansão para outros bairros pela primeira vez e irá atuar no Pirambu, Serviluz e Genibaú. "A Manos Unidas também quer que a gente trabalhe em outros territórias, outros bairros têm outras necessidades", elabora o educador Mário Henrique Wingliston. Mais informações devem ser divulgadas nas redes sociais.

Casa de Andaluzia em números

600 mulheres foram formadas em 20 turmas do Curso Básico de Costura da Casa de Andaluzia. Em cada curso de seis meses, cerca de 30 mulheres são atendidas

50% das alunas são trans e travestis

20% ingressa no mercado de trabalho com parceria com SINE/IDT e ISBERT

Casa de Andaluzia

  • Onde: rua Joaquim Magalhães, 76 - Benfica
  • Quando: segunda-feira a sexta-feira, das 8h às 21 horas; sábado, das 9h às 12 horas
  • Mais infos: (85) 3253-5862 e Instagram

ONG Mães da Resistência: apoio em comunidade

Na história de Vida Victória, a arte sempre esteve presente. Foi na casa de dona Vanilda, sua avó, onde começou a desenvolver suas aptidões. Sua mãe, Maria Leonete, até lembra quando chegava na residência e via dona Vanilda toda "pintada e rabiscada". Ao se surpreender com a cena, apenas ouvia: "deixa, minha filha, deixa". O afeto e a inclinação artística eram visíveis.

Hoje, mantém o Ateliê Vida Boa, com peças exclusivas feitas à mão. Pinturas em tela e pinturas em vaso são algumas das marcas registradas da artista. Como relata, desde muito nova teve a vertente para a criação, algo que já era percebido por seu pai. Em sua jornada, a arte "foi uma válvula de escape" desde quando era pequena.

De acordo com a artista, essa tendência foi se intensificando após a morte de seu pai, quando passou a desenhar nas primeiras sessões de acompanhamento com psicóloga. "Minha mãe chegava em casa e eu sempre estava construindo alguma coisa, lembro de uma vez ter feito uma árvore para minha avó que girava com o motor de um carrinho que eu havia ganhado. Com esse atrevimento que vem da arte também, de transformar, 'isso não me pertence'. Então, eu também sabia o que não me pertencia, e tentava usar isso como uma ferramenta", descreve.

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Por isso, chegou a fazer oficinas de mosaico muito cedo. A questão também se enquadra no processo de transição de Vida, quando completou 18 anos, com a perspectiva de fazer cursos que a permitissem trabalhar por conta própria. Hoje, aos 25 anos, ela é estudante de Serviço Social na Universidade Estadual do Ceará (Uece).

Em um futuro próximo, Vida Victória deseja entrelaçar "projetos sociais" e ensinar pintura e artesanato para públicos vulnerabilizados social e economicamente. De certa forma, o interesse no coletivo também a levou a integrar a ONG Mães da Resistência, dedicada ao acolhimento de mães, pais e familiares de pessoas LGBTQIA+ e à garantia dos direitos e dignidade da comunidade.

Com diferentes sedes espalhadas pelo Brasil, a organização visa prestar acolhimento psicossocial, suporte jurídico, ações educativas, orientações na área da saúde, formação e letramento e ações de inclusão. No Ceará, a ONG é localizada no bairro José Bonifácio.

Vida Victória conheceu o movimento após três anos tentando retificar seus documentos, entre tamanhas burocracias e contextos desfavoráveis. A partir de indicação de uma amiga, soube da existência do projeto e alcançou o objetivo. Ela integra a ONG com sua mãe, a autônoma Maria Leonete Martins, 52 anos.

"Trouxe minha mãe nessa perspectiva de que ela me acolheu e me amou desde o princípio, mas foi sendo isolada pelo ciclo social. É um processo que todas as pessoas que amam uma pessoa trans passam. Uma 'punição' por algo que, na percepção social, não deveria acontecer", relata a artista.

Mesmo com "toda essa pressão", Leonete nunca pensou em desistir de apoiar sua filha. "Muitas pessoas pensam que o que nos apavora, mães de pessoas trans, é nossos filhos serem 'diferentes'. Pelo contrário. Eles são maravilhosos. O que nos apavora é a violência, é o perigo que nos atormenta por não saber o que pode acontecer quando vão sair, como vão ser tratados", enfatiza.

Elas destacam o apoio que existe entre as integrantes da ONG e como é fundamental uma rede de acolhimento desde a infância, pois um dos graves problemas é o bullying sofrido por filhos e filhas em escolas, por exemplo. No Mães da Resistência, são feitas cerimônias para integrar ainda mais quem participa, entre comemorações de Natal e reuniões mensais.

"Quando as mães conseguem entrar em comunicação com o Ministério Público, conseguir alguma oportunidade ou emprego para pessoas LGBTQIA , sempre tem um tipo de ato ou confraternização. Elas estão sempre nesse movimento político e afetivo na defesa do direito", exclama Vida.

Primeira secretária da Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (Atrac), Vida Victória defende mais políticas públicas para a comunidade LGBTQIA+ no Estado. Apesar de reconhecer a importância da Secretaria da Diversidade (Sediv), pontua a necessidade de uma legislação a nível nacional e de um olhar estrutural para a questão.

Prestes a apresentar seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) na universidade, a pintora vislumbra voltar a olhar mais atentamente ao seu ateliê: "tenho perspectiva profissional de trabalhar e viver a partir da arte, ensinar outras pessoas, porque não é só deixar a 'vara para pescar', é preciso dar o peixe. Acredito que o meu propósito em 2025 esteja mais voltado a esses projetos. Através da arte, ajudar a salvar vidas. Porque ela fez isso por mim". (Miguel Araújo)

Jovem enxerga a vida a partir da moda e da arte - pontos de refúgio para um cotidiano marcado por abandonos e preconceitos

Foi no período da adolescência que Hayonnara da Silva Coutinho passou a compreender quem era. Quando se olhava no espelho, não se sentia parte dele. Havia algo muito mais abrangente e mais significativo além daquele "simples corpo de carne". Uma das formas pelas quais manifestava os sentimentos era a partir das roupas. Suas sensações a acompanhavam, aliás, desde a infância, quando "tinha comportamentos que marcavam que não era um menino, mas uma menina". "Nunca me senti parte daquele universo, sentia sempre um vazio dentro de mim. Estava faltando alguma coisa. Não estava completa", diz.

Como ainda era criança, não sabia como nomear seus sentimentos. Por volta dos 16 anos, Hayonnara já se entendia como uma mulher trans. Entretanto, ao seu redor não estavam pessoas que a compreendessem. Hoje atendida pela ONG Mães da Resistência, a jovem enfrentou percursos difíceis e conturbados.

Por ser ela mesma, foi expulsa de casa aos 17 anos. Seus pais não a aceitavam. Ao longo do período em que esteve em casa, Hayonnara sofreu diferentes agressões - como insultos, restrições de alimentação e impedimento de ver televisão. Conforme relata, sua família chegou a dizer que "nunca a chamaria no feminino", e continuaram falando seu nome "morto" - nome de registro de uma pessoa trans que ela deixou de usar após a transição de gênero.

"Para eles, a biologia é o que me resume. Não é minha alma, não é o ser que sou. É apenas um pedaço de carne que irá se decompor. Interessante que a biologia tem explicação para tudo, mas não tem para o preconceito - ainda mais quando parte dos pais, que deveriam dar amor e acolhimento aos filhos, e não rejeição. É uma das coisas mais duras que tenho que engolir seco: saber que tenho pai e mãe vivos e não posso contar com a ajuda deles para nada", lamenta.

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Apesar da rejeição parental, Hayonnara conseguiu encontrar acolhimento em outros contextos e espaços, como quando sua mãe decidiu tirá-la do colégio ao descobrir que ela era uma mulher trans a partir de uma colega de classe. A colega e a mãe dela escreveram uma carta para Hayonnara e para sua mãe, pedindo que ela não fosse retirada da escola.

"Sou grata por ela até hoje", afirma. Ao ser expulsa da residência, morou em casas de cinco pessoas diferentes e se deparou com diversas dificuldades para encontrar apoio de instituições públicas, com uma "falta de mobilização do Estado por uma jovem que estava quase em situação de rua". Hoje com 18 anos, Hayonnara descobriu, então, a ONG Mães da Resistência, e está morando na casa de uma amiga.

Ela relata ter encontrado amparo na ONG: "por mais que eu tenha perdido uma família, ganhei uma rede inteira de amigos, que estão me ajudando sempre a não desistir. Se antes eu me via como uma 'mera mortal' diante dos 'deuses', como enxergava meus pais, hoje eu me sinto uma deusa diante de tantas pessoas que me dão apoio. Sou uma pessoa mais forte".

Hayonnara, agora, é estudante e tem dois cursos de preferência entre as opções para uma universidade: Medicina e Licenciatura em Geografia. Sonhos diversos se manifestam em seus pensamentos.

"Gostaria de dizer para os pais para sempre acolherem seus filhos quando eles se assumirem - aliás, não deveria nem existir a palavra 'assumir'. Acho que todo mundo deveria apenas ser da forma que é. Infelizmente, o preconceito existe, e as pessoas sentem medo. Por isso, pais, amem sempre seus filhos. Não existe nada pior do que você ter um pai ou uma mãe que, mesmo gostando deles, você sabe que eles não gostam de você. A pessoa que eles 'gostam' nunca existiu". (Miguel Araujo)

Conheça a ONG

  • Onde: Mães da Resistência (Rua Olívio Câmara, 74 - José Bonifácio)
  • Mais infos: Instagram
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