Por meio da assistência social e jurídica, milhares de pessoas conseguem direitos básicos comumente negligenciados no País que mais mata trans e travestis há 15 anos. De acordo com dossiê de 2024 da Rede Trans Brasil, antecipado pelo O POVO em matéria publicada na sexta-feira, 24, o Ceará é o terceiro estado que mais mata trans e travestis. Os números são graves e mostram a necessidade de políticas públicas voltadas à população.
Em janeiro de 2023, o Ceará iniciou um movimento pioneiro com a criação da Secretaria da Diversidade (Sediv). A pasta atendeu, até dezembro de 2024, 1.580 pessoas através do principal equipamento, o Centro de Referência LGBT Thina Rodrigues (CERLGBT) . Destas, 1.106 foram pessoas trans, com perfil majoritário de mulheres trans, travestis, negras, entre 18 e 24 anos, em situação de pobreza ou extrema pobreza.
"A Secretaria da Diversidade realizou oito Conferências Regionais LGBTI em todas as macrorregiões do Estado, reunindo mais de 800 participantes, elegendo 52 pessoas trans como delegadas. As conferências promovem o diálogo entre a sociedade civil e o governo, fortalecem a participação popular, auxiliam no combate à discriminação e na promoção da equidade, além de contribuírem para a elaboração do Plano Estadual de Direitos Humanos e Cidadania LGBTQIA+ ", explica a titular da Sediv, Mitchelle Meira.
Entre as demandas mais recorrentes, a gestora menciona os encaminhamentos para hormonoterapia e apoio no processo de retificação de nome e gênero. Nestes campos, a Sediv realiza atendimento presencial e on-line, além de "promover ações de qualificação profissional e formação", e dialogar com órgãos como a Defensoria Pública. Uma dessas ações é o Painel Dinâmico de Monitoramento da Violência LGBTFóbica, desenvolvido em cooperação com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) com dados extraídos do Sistema de Informações Policiais (SIP) da Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE).
"Reconhecemos que nem todos os casos são denunciados oficialmente, por isso mantemos diálogo contínuo com organizações da sociedade civil e promovemos campanhas de conscientização para estimular a denúncia dos casos de LGBTfobia", desenvolve Mitchelle. Para 2025, estão previstas ações transversais com outras secretarias, a exemplo das pastas de Educação e de Direitos Humanos, assim como acordos de cooperação com a Universidade Federal do Ceará (UFC) e o Instituto Federal do Ceará (IFCE).
Num outro eixo, devem seguir os editais com recursos destinados ao fomento de projetos sociais e casas de acolhimento LGBTQIA+. Segundo a secretária, a pasta "oferece apoio ao movimento, acolhendo suas demandas e dando o devido encaminhamento às áreas competentes".
A secretária Mitchelle Meira informa que todos os profissionais que atuam no CERLGBT são pessoas LGBGTI+ com treinamentos voltados ao enfrentamento de LGBTfobia, transfobia, racismo e outras formas de discriminação.
"Ainda assim, situações de transfobia dentro dos próprios equipamentos públicos, a orientação da Sediv é clara: todo caso deve ser tratado com seriedade e rigor, seguindo protocolos de acolhimento imediato, registro da ocorrência e encaminhamento para suporte jurídico e psicossocial, além da realização de ações educativas para evitar a reincidência e a disponibilização de Canal de Ouvidoria 155, para filtrar e encaminhar demandas com sigilo", informa.
Para abarcar demandas e contemplar as necessidades de pessoas trans, é importante a existência de um ecossistema que as acolha. Nessa rede multissetorial devem estar profissionais preparados para compreender e respeitar a diversidade de gênero como algo natural, como afirma o psicólogo Dante Machado.
Desde a graduação, sempre teve forte interesse pelos estudos sobre gênero, sexualidade e saúde mental da população LGBTQIA+. Ao longo de sua trajetória, percebeu como suas vivências "são profundamente marcadas por dores, expectativas e sofrimentos únicos", que muitas vezes não são compreendidos por profissionais sem formação adequada.
Enquanto homem trans, o psicólogo também viveu na prática "muitos dos desafios enfrentados por pessoas trans", e observou como seus sofrimentos eram minimizados ou desconsiderados. Assim, se especializou na área e percebeu a importância "de um atendimento psicológico sensível, que validasse e acolhesse as particularidades de cada pessoa".
Segundo Dante, as queixas mais comuns relatadas nos atendimentos psicológicos estão relacionadas à experiência de rejeição, seja pela família, pelo trabalho ou pela sociedade. "O medo da rejeição e a experiência vivida dela geram um sofrimento profundo, muitas vezes levando a um sentimento de solidão, baixa autoestima e pensamentos negativos sobre si mesmas. As questões relacionadas à identidade de gênero também são centrais: o desejo de viver de forma autêntica e o medo de ser desrespeitado ou não aceito", explica.
Há, ainda, relatos de desconforto com autoimagem e corpo, bem como ansiedade, depressão e questões ligadas às violências simbólicas e físicas. Precisam, assim, serem abordados com cuidado. Ele destaca a importância de um ecossistema de acolhimento para pessoas trans que vá além de iniciativas específicas como casas de acolhimento.
"Não basta apenas um lugar físico; é preciso que a sociedade mude sua visão e entenda a diversidade de gênero como algo natural. Muitas vezes, a exclusão social e discriminação levam a uma série de consequências negativas, como o aumento de ansiedade, depressão, dificuldade em acessar serviços essenciais (saúde, educação, mercado de trabalho)", comunica.
Ele acrescenta: "iniciativas como espaços seguros, projetos comunitários e até políticas públicas inclusivas ajudam a reduzir essa marginalização e exclusão. E, por mais que as casas de acolhimento tenham um papel fundamental no cuidado e na proteção, um sistema de apoio mais amplo é o que realmente fortalece as pessoas trans, ajudando-as a construir uma vida mais digna e livre de estigmas". (Miguel Araujo)
"Fui provocada para escrever algumas linhas sobre a Livro Livre Curió e como a biblioteca me acolheu enquanto uma pessoa transsexual. Falar de transição de gênero requer um amontoado de palavras que muita gente possivelmente não vá entender, requer experiência de caso e muita determinação. Falar de livros, por outro lado, pode parecer mais fácil, afinal, todas as pessoas sabem o que é um livro, mas não necessariamente todas essas mesmas pessoas chegaram a ler um, como a minha avó.
Dona Beleza tem 76 anos e nunca leu um livro ou frequentou uma biblioteca. Ainda assim, ela me criou para frequentar bibliotecas e me obrigava a estudar, não interessava se eram dias de chuvas, dias de doenças, ela sempre me convencia a ir à escola. Aos 19 anos, uma de suas netas decidiu assumir uma identidade de gênero diferente. Ela ouviu de sua filha caçula, Rosiane, minha mãe, que o então filho mais velho dela havia decidido se chamar Ayla e que dali em diante assumiria uma identidade feminina.
Ayla, na boca dela, virou Lara, pois era mais fácil de pronunciar, já os pronomes ela achava melhor evitar para não correr o risco de errar. Eu morando no Curió e ela, em Cascavel. Nossa relação se tornou distância e ela não gostava de falar ao telefone, sempre preferiu o cara a cara. A minha biblioteca era ela. A biblioteca mais próxima de mim era a Livro Livre Curió, uma iniciativa de pessoas que eu não conhecia até então, mas que rapidamente me chamou atenção, eles queriam me conhecer, queriam me ouvir, queriam me ler. A única pessoa no mundo interessada nas minhas histórias era ela, mas ela não estava lá e eu precisava falar. Quando, pela primeira vez, eu passei a frequentar um clube de leitura de mulheres, foi quando eu percebi que a Ayla poderia ter a avó dela por perto de novo.
Eram mulheres de diversas idades, mais velhas e mais novas, umas mais caladas, como minha avó, e outras mais falantes, como eu. Elas se encontravam todas às quintas à noite e era como se eu estivesse na cozinha dela, sentada tomando o seu café doce e esperando enquanto ela cozinhava o jantar. Ela não dizia nada, mas eu, sim. Sempre dizia porque ela gostava de me ouvir por mais que não entendesse muitas coisas das quais eu falava. Aquelas mulheres, em roda, liam poemas eróticos, liam Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e ainda discutiam sobre Françoise Ega. Minha avó nunca saberia quem eram aquelas escritoras, e minha vontade era lhe falar, então eu me resignava a escutar aquelas mulheres como se elas fossem nós. Depois das leituras compartilhadas, das histórias contadas e das emoções declamadas, um cuscuz com café fazia a minha mente lembrar imediatamente dela.
Tudo preparado por essas mulheres que eu não conhecia, que eram minhas vizinhas, mas que eu não tinha ideia de suas existências. Elas, dona Beleza, dona Rita, Lígia, Amanda, Ana e tantas outras fizeram eu, que ainda crescia como Ayla naquele chão, que hoje continua de pé, prestar".
Ponto de vista escrito por Ayla Nobre. Escritora cearense de 25 anos nascida em Fortaleza, é licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Sua proximidade com a literatura alia-se ao estudo das dinâmicas de participação social, áreas nas quais ela se dedica, refletindo em seus textos e iniciativas um olhar atento para o impacto da cultura e do engajamento coletivo.
Desenvolve eventos de multilinguagens artísticas a partir do acolhimento e celebração do protagonismo transmasculino e não-binário. Além de feiras, saraus e performances, também produziu a revista "Memória Transmaculina - Rastros de Permanência", projeto apoiado pela Secretaria de Cultura do Ceará (Secult-CE).
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Oriundo do Conjunto Ceará, é um coletivo LGBTQIA que atua há quatro anos nas periferias de Fortaleza. Busca trazer a arte e fomentar a cultura LGBTQIA em bairros periféricos por meio de apresentações (teatro, música, dança, cinema e fotografia) e encontros, palestras e atendimentos psicológicos direcionados para outras instituições.
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Atua nos bairros Bom Jardim, Siqueira, Canindezinho, Granja Portugal e Granja Lisboa a partir da atuação de defensores da comunidade LGBTQIA . É um dos responsáveis pela terceira edição do Trans Festival, que acontece até o dia 1º de fevereiro no Centro Cultural Bom Jardim.
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Em homenagem a Janaína Dutra, primeira travesti a obter uma carteira profissional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), funciona como o serviço municipal de proteção e defesa da população LGBTQIA em Fortaleza. Realiza atendimento jurídico, psicológico e social.
Espaço do Governo do Estado do Ceará, vinculado à Secretaria da Diversidade (Sediv), para atendimento social, psicológico e jurídico. Também oferta apoio no acesso à educação profissional e empregabilidade.
Definida como república de acolhimento e cultura para jovens LGBTQIA em situação de vulnerabilidade, tem capacidade para receber até dez pessoas simultaneamente, cada uma em um ciclo de três meses. Também oferece programa de apoio psicossocial, plantões de orientação jurídica e orientação laboral. Recebe doações em www.praquemdoar.com.br/outracasa
Fundado em 2004 pelo mestre George Sosa, funciona como um espaço de cultura popular com foco na cultura LGBTQIA na periferia de Fortaleza. Atua no bairro Curió e conta, entre os projetos, com biblioteca comunitária, cine clube e a web TV Tempo de Amar. Projeto pioneiro reconhecido em 2017 pelo Ministério da Cultura Nacional.
Laboratório de estudos e criação criado em 2019, como parte do Centro de Artes da Universidade Regional do Cariri (Urca), que hoje funciona como espaço de formação, produção e gestão cultural autônoma. Faz ações voltadas a práticas artísitcas LGBTI dentro das artes visuais.
Participa, desde 2020, da criação, curadoria e produção em arte dissidente. É certificada como ponto de cultura viva nacional desde junho de 2024, com aprovação de mais de 80 projetos.
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