"Ver meu neto na avenida é o maior orgulho que eu tenho. Saber que existe alguém na minha família que resolveu abraçar o legado que criei me deixa muito tranquilo", diz Carlos Brito, presidente do Maracatu Nação Pici.
Fundador do grupo, Carlos criou a agremiação em 2003, estreou no desfile da Avenida Domingos Olímpio em 2009 e consolidou o Nação Pici como um dos grupos difusores do Maracatu Cearense. Hoje, aos 64 anos e com um estado de saúde que, por vezes, dificulta a realização dos ofícios diários, o regente agradece por ter entre os descendentes alguém que perpetua de forma pulsante um legado que crava seus 22 anos.
Com uma conexão com o avô que vem desde a escolha do nome, Carlos Henrique atende ao telefone entre lantejoulas, fitas e tecidos. Às vésperas do desfile carnavalesco de 2025, o dançarino comanda os preparativos, que vão desde a customização dos figurinos até os ensaios abertos que acontecem nos barracões.
Diante do cenário relatado por porta-vozes dos blocos no Carnaval, antevendo a demora no direcionamento do orçamento disponibilizado pela Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor), Carlos traz consigo, além do espírito da renovação, o do planejamento estratégico.
Aproveitando inscrições em editais direcionados à manutenção do patrimônio imaterial da Cidade, como o recém-conquistado Edital de Cultura Tradicional Popular da Secultfor, Carlos Henrique busca diluir a aquisição de verba para o Carnaval ao longo dos meses.
"Eu procuro fazer editais durante o ano para poder ter essa sobra para custear o Carnaval. Se eu for esperar o edital da Prefeitura direcionado para isso, tudo ficará atrasado. Aqui, enquanto estamos finalizando de 2025, já começamos a organizar o Carnaval de 2026", pontua.
Como fruto desse trabalho de manutenção cultural contínuo, Carlos Henrique também criou o projeto "De Canto a Canto, Enobrecendo o Maracatu Cearense". Por meio de visitas à rede pública de ensino, o dançarino leva apresentações de maracatu, exibe os desfiles clássicos da Avenida Domingos Olímpio e resgata os personagens da manifestação.
Para além da herança familiar, Maria Clara Monteiro conheceu o Maracatu por meio de uma professora de práticas percussivas na Universidade Federal do Ceará. A aluna do curso de música, aos 19 anos, descobriu na Associação Cultural Solidariedade e Arte (Solar) que o Maracatu, além de ser um intermédio de conexão espiritual, pode ser uma bússola a guiar sua trajetória acadêmica.
Percussionista, Maria descobriu o agbê nos ensaios do Solar, e hoje é o principal instrumento que executa. Além do aprendizado de realizar o movimento corporal necessário no ato de tocar o agbê, o baque-virado lhe ofereceu novas perspectivas para seus planos futuros.
"Quando entrei no curso, não tinha muitas expectativas, achava que seria algo muito quadrado, mas ao ser apresentada ao Maracatu, novas possibilidades se abriram. Estou me formando hoje para ser professora, e poder lecionar sobre a ancestralidade do Maracatu para a rede pública seria algo muito especial", afirma.
E é por Carlos e Maria que Pingo de Fortaleza, coordenador de programas e projetos da Solar, acredita que o Maracatu não só se mantém, mas se renova a cada xequerê que é repassado.
Hoje com quase 300 brincantes na avenida, o músico expressa a realização por ter um crescimento exponencial do público jovem que participa de forma ativa em todas as etapas que compõem o projeto pedagógico da associação.
"Os adolescentes e crianças já têm o brincar na natureza. Eles ainda estão em uma fase essencialmente de brincar, o que nós, inclusive, apregoamos para estar presente em todas as fases da vida, porque a manifestação não deixa de ser vista como um brinquedo. E é muito interessante ver o envolvimento deles não somente com a percussão e a dança, mas também nos preparativos, como no reparo de instrumentos e na parte da customização", destaca.
Conexão Ancestral
Clara Braga olha para o céu ao se referir à tia Leinha. Desde pequena, acostumada a ver a tia sair como Preta Velha na avenida, a jovem cresceu envolta por adereços dos desfiles, xequerês e alfaias. Com a morte da tia, há três anos, Clara encontrou no Maracatu uma possibilidade de se aproximar da família em um contexto espiritual.
Aos 18 anos, a jovem entende que a coletividade proporcionada pela manifestação é, por si só, suficiente para manter o maracatu vivo, independentemente dos percalços e empecilhos financeiros.
"Chegar no Solar foi entender que o Maracatu não é só um processo artístico. Ele tem essa carga cultural, é um processo social e que me fez entender que a arte nem sempre precisa ter uma função utilitária", elucida.
Junto aos pais, que também participam da Associação, Clara toca o projeto "Casinha do Bem", que viabiliza o direito cultural em comunidades vulneráveis.
"O pouco que eu aprendo no Maracatu, e que, na verdade, é um tanto de coisa, eu tento levar para essas crianças, por meio de aulas de percussão e aulas sobre cultura popular. Você tira muitas reações das crianças, sobretudo a curiosidade. Entregamos uma faísca para eles e, futuramente, eles começam a se reconhecer no Maracatu também, se vendo pertencentes àquela história", explica Clara.
A jovem destaca, ainda, o interesse que vai para além da percussão e do ato de performar na avenida. Honrando a memória da tia, desde sua entrada no Solar, em fevereiro de 2024, Clara também deu início a um curso de corte e costura para, futuramente, contribuir na adereçagem.
"Minha tia foi aderecista de vários grupos de Maracatu. Você poder construir com as suas mãos algo que será símbolo de identidade de todo um movimento, me parece muito interessante", finaliza.
De aluno a regente
Aficcionado por instrumentos de corda, Janderson Oliveira conheceu o Maracatu Solar a convite de uma amiga. Ao ingressar na associação, em 2017, estava longe de imaginar que, em 2021, se tornaria regente do batuque principal e coordenaria 150 pessoas na avenida.
Além de músico, Janderson é professor na rede pública de ensino e, por meio de suas aulas, evidencia a transversalidade da manifestação, que é veiculada nas práticas de educação física.
Para além do desconforto inicial, advindo do que para muitos é visto como desconhecido, Janderson afirma que, em uma análise dos últimos dez anos, o Maracatu tem ganhado visibilidade, assim como diversas manifestações da cultura afro-brasileira. “Nos últimos anos, tem entrado demais dentro da sala de aula e acho que isso tem a ver com um reforço positivo trazido pelas redes sociais e pela mídia. Assim como o maracatu, o Reisado e o Coco de Roda também têm sido cada vez mais impulsionados”, declara.
O docente ressalta, entretanto, que, apesar dos avanços, a implementação da Lei 10.639, de 2003, que instaura a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo oficial da Rede de Ensino, está em evolução gradual até ser cumprida plenamente.
Onde brincar Maracatu em Fortaleza
Maracatu Solar
Quando: aos sábados, às 18 horas
Onde: Av. da Universidade, 2333 - Benfica
Gratuito
Mais informações: @maracatusolar
Maracatu Nação Pici
Quando: consultar programação
Onde: Rua Diogo Correia, 644 - João XXIII
Gratuito
Mais informações:
@maracatunacaopici