Uma realidade distópica na qual o afeto e a cumplicidade são proibidos, com um regime autoritário que oprime e condena as demonstrações de vínculo afetivo entre indivíduos negros. Atos considerados subversivos, passíveis de punição e repressão. Esse é o enredo do espetáculo "A2".
Um grupo de resistentes, que se reúne para celebrar a vida e suas entidades sagradas, se vê em uma encruzilhada entre as estratégias de luta e as identidades dos membros. Entretanto, o nascimento de duas criaturas os leva a uma jornada de reconhecimento.
A peça faz parte do Preamar de Artes Cênicas 2024, ação de encerramento do Programa de Formação Básica em Artes Cênicas da Porto Iracema das Artes, e será apresentada gratuitamente nos dias 11 e 12 de fevereiro no Teatro Dragão do Mar. O espetáculo é estrelado por atores do coletivo A2, formado dentro do projeto. A trama tem como foco o debate de questões raciais, baseada na vivência dos próprios alunos.
Para o ator Naná Sales, que interpreta o personagem Obitã, o discurso do espetáculo reafirma a importância de lembrar as histórias vividas pelos ancestrais e se conecta com a narrativa afrofuturista. "Usamos o discurso de que muitas heranças ancestrais não seriam mantidas hoje, no futuro, se pessoas não tivessem sido torturadas e mortas para termos esse acesso. Acredito que a ancestralidade tem estratégias para sobrevivermos e contarmos nossa história", pondera.
Naná acredita que os personagens refletem os atores de "A2" e reforça a importância do afeto para reconhecer "como as políticas de desumanização, egoísmo e individualismo são prejudiciais" e podem abrir brechas para conflito na narrativa. "Esse conflito gera uma cortina de fumaça para o racismo e outras violências, nos cala e nos leva a solidão de ter que lidar sem poder recorrer aos outros".
Dentro deste sistema distópico, o conceito de "liberdade emocional" significa tudo. ""Liberdade, no geral, é uma grande questão para Obitã. O foco é ter o direito de nos amar e sermos combativos aos métodos que o sistema usa para não nos amarmos - a nós mesmos como indivíduos, e aos que se parecem com a gente".
O ator Jorge Patrick, que interpreta o personagem Kala, conta que não teve dificuldades em se colocar num cenário onde pessoas negras sofrem discriminação diariamente. "É mais um processo interno de entender que já estou nele, como uma pessoa negra periférica em um sistema opressivo. Entender que o que estamos fazendo e passando ali não está muito distante da vida real", enfatiza. E continua: "Quando eu penso em opressão, em indignação das coisas que acontecem, violências e amores vividos pelas pessoas negras em um sistema opressivo, vejo que eu e meu personagem temos essas vivências que são quase análogas".
O intérprete destaca que a caracterização foi pensada para explorar adornos de culturas ancestrais, com simbologias que representam o presente, e menciona o uso da capoeira e do reggae como elementos importantes para exprimir resistência. Ele ainda compartilha que o termo "afrofuturismo" é utilizado na montagem para gerar conexão com o agora.
"O afrofuturismo vem de uma forma de vivência mesmo. Acho que ser negro no Brasil já é meio futurista. A gente tem que entender e estudar muito bem o passado, e não só o passado opressivo, mas o passado ancestral, de ensinamentos, de passagens, de cuidados, para arquitetar um futuro", pontua Jorge.
Coordenadora do Programa de Formação Básica em Artes Cênicas da Porto Iracema das Artes, Maíra Abreu diz que grande parte dos alunos está tendo a primeira experiência com as artes. Ao longo do processo, muitos relatam que a experiência é totalmente diferente da ideia que tinham.
"É nesse momento que eles começam a se entender enquanto artistas e a pensar suas experiências como trajetórias válidas para si e para a cena artística. Surgem muitos conflitos internos sobre o que é ser artista". Ela complementa que, quando entram em contato com a diversidade de artistas-formadores, percebem que o fazer artístico acontece de variadas maneiras. "(Eles) passam a se entender como fazedores das artes, com suas identidades próprias e como construtores de suas trajetórias", pontua.
Espetáculo "A2"