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Livro de pesquisadora brasileira narra as histórias das 'tias da merenda'
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Livro de pesquisadora brasileira narra as histórias das 'tias da merenda'

"Merendas e afetos: narrativas de presença e poder" narra 26 histórias de merendeiras de várias regiões do Brasil
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Livro
Foto: FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL/DIVULGAÇÃO Livro "Merendas e Afetos: Narrativas de presença e poder"

"Aprendi a cozinhar cozinhando e peguei tanto gosto pelo trabalho que a minha cozinha estava sempre limpinha. Eu tinha um carinho e um cuidado muito grande pela cozinha", conta a merendeira aposentada Maria das Graças Soares Barbosa, que trabalhou no Colégio Estadual Maria Polidoro, em Canoas, no Rio Grande do Sul, entre 1989 e 2013. "Até hoje encontro alunos que me reconhecem e falam 'tia, como era boa a sua merenda'".

A história de Maria das Graças é uma das que fazem parte do livro "Merendas e afetos: narrativas de presença e poder", organizado pela pesquisadora Sandra Regina Barbosa Soares Coleman. A publicação traz 26 narrativas biográficas, todas de pessoas negras de diferentes estados brasileiros.

O livro reúne histórias de vida de 26 mulheres e homens negros, aqueles que, muitas vezes, são chamados de tias e tios: a tia da merenda, a tia do corredor, o tio do portão, o tio da limpeza. São funcionários que costumam conhecer os estudantes às vezes melhor que os próprios professores e que são fundamentais para o funcionamento das escolas. O livro pretende dar nome e sobrenome para essas pessoas, trazendo a história de vida de cada um, indo muito além de apenas tia ou tio.

"Apesar de não ter muito estudo, trato todo mundo bem, aprendi com a vida", diz outra biografada, Fátima Souza de Oliveira, conhecida carinhosamente como Fatinha, responsável pela limpeza do Centro Integrado de Educação Pública (Ciep) 370 - Professor Sylvio Gnecco de Carvalho, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.

"Ser tia da limpeza pra mim é gratificante. Com os alunos, aprendo e ensino. Às vezes, me sinto a segunda mãe deles. O carinho e admiração é recíproco. Sou muito grata pelo trabalho que tenho", diz, no livro, Fátima.

"Eu vejo essas merendeiras, inspetoras, elas são invisibilizadas, elas são invisíveis para a direção escolar. Muitas, a direção escolar ou os professores não sabem o nome delas, que não participam ativamente das decisões da escola. Eu acredito que elas sabem muito mais sobre os alunos do que os professores porque têm um convívio maior com os alunos, porque estão ali vendo o que os alunos estão fazendo no corredor. Quando eles vão para a merenda, a tia da cozinha está ali, ela está vendo tudo", diz a autora.

"O livro traz algumas características da sociedade brasileira", diz a escritora. "A questão do trabalho infantil, muitas mulheres que começaram a trabalhar, crianças com cinco, seis anos de idade, você vai encontrar a questão do serviço doméstico, você vai encontrar a escravização. Em pleno (ano de) 1950, no interior, ainda existiam pessoas vivendo na escravidão". (Agência Brasil)

Onde encontrar a obra

O livro Merendas e Afetos: Narrativas de presença e poder pode ser adquirido no site da editora Revista África e Africanidades.

 

A escritora Sandra Coleman diante da biblioteca do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN)
A escritora Sandra Coleman diante da biblioteca do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN)

O percurso de Sandra

O livro "Merendas e Afetos" é o terceiro de Sandra Coleman, também autora de "Mulheres negras brasileiras - Presença e poder" (2020) e de "Filhos, pais e avôs - Narrativas de presença e poder" (2021). Em todas as obras, Sandra reúne narrativas de pessoas negras.

As experiências de vida dos biografados também ressoam na história da autora. Ao reunir histórias de outras pessoas, Sandra ressignifica a própria narrativa. Ela nasceu em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. De família vulnerável, desde cedo, trabalhava ajudando a mãe nas tarefas domésticas.

Sandra diz que sempre sonhou fazer um curso superior. Desde cedo, foi desencorajada. "Eu tinha o sonho de entrar na universidade, mas, à minha volta, os meus amigos eram todos não negros. Porque a gente tem essa coisa, hoje em dia, então eles não eram negros. E eles falavam que faculdade era besteira, que estava cheio de engenheiro trabalhando de gari. Para que eu ia fazer faculdade? Mas eles foram", lembra.

Ela passou por uma série de empregos, e, em uma deles, chegou a ser escondida do dono da empresa porque ele não podia saber que tinha uma funcionária negra contratada ali.

Foi no Instituto Palmares de Direitos Humanos (IPDH) que sua consciência racial "explodiu". Lá, pela primeira vez, ela conta que foi chamada de bonita. "Naquele momento, eu fiz assim: 'Eu? Peraí, ela tá falando comigo? Como assim? Bonita? Eu? Eu, bonita?'. E eu levantei e fui pro banheiro, olhar no espelho. Eu fiquei assim: 'peraí, a mulher disse que eu sou bonita? Como? Eu?'. Porque eu nunca, 38 anos de idade, eu nunca tinha ouvido alguém dizer que eu era bonita."

Sandra realizou o sonho de ir para a universidade e tornou-se bacharel em artes-espanhol e mestra em estudos profissionais, com concentração em educação multicultural. "Eu acredito muito no uma sobe e puxa a outra. Eu acredito no ubuntu, eu acredito no, juntas, somos mais fortes", diz. Ubuntu é uma palavra de origem africana que remete a uma filosofia que se baseia na interdependência entre as pessoas. Pode ser traduzida como "Eu sou porque nós somos". 

 

Preconceito que persiste

Tanto Maria das Graças quanto Fátima, personagens do livro "Merendas e Afetos", são porta-vozes de história vividas por mulheres negras. "Sofri racismo em uma das casas em que trabalhei, em que a irmã da patroa disse que não gostava de gente preta. De preto só gosto de feijão", lembra Fátima.

De acordo com a Constituição Federal, o racismo é crime inafiançável no Brasil. Quem comete o ato racista pode ser condenado mesmo anos após o crime. A Lei 14.532, sancionada em 2023, aumenta a pena para a injúria relacionada a raça, cor, etnia ou procedência nacional. Com a norma, quem proferir ofensas que desrespeitem alguém, seu decoro, sua honra, seus bens ou sua vida poderá ser punido com reclusão de dois a cinco anos. A pena poderá ser dobrada se o crime for cometido por duas ou mais pessoas.

Maria das Graças conta que sofreu racismo. "Uma criança derramou a merenda no chão, e a professora falou: 'Vamos, negra, limpar é o seu serviço'. Isso na frente das crianças. Engoli quieta e depois de servir a merenda procurei a Neide, a minha diretora", diz.

Graça afirma que, hoje, é ela que se define: "Se me perguntarem quem eu sou, respondo: Negra, mãe, avó, carnavalesca, capoeirista e filha de Oya. Me considero uma verdadeira guerreira". 

 

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