Autocura. Foi com esse objetivoque Célia Chaves Gurgel do Amaral iniciou a escrita dos contos que foram reunidos no livro "Tempo Menina". Lançada na sexta-feira, 21, pela Edições Demócrito Rocha (EDR), a obra resgata a infância da autora, mesclando memória e ficção.
Mesmo com boas lembranças dos tempos de criança, Célia revela que viveu tensões no seio familiar que a marcaram profundamente. "Era uma família de muitos irmãos, e uma tia, que era irmã do meu pai, gostava mais de uns sobrinhos do que de outros, eu estava dentre aqueles sobrinhos que ela não gostava", lembra.
De início, a escritora, que é mestre e doutora em Educação, não tinha a intenção de transformar as memórias em um livro, começando a produzir os textos por volta de 2020 como forma de tratar as feridas abertas. Usar a ficção dentro do processo de cura foi o modo da autora refletir sobre os fatos e pensar no que gostaria que tivesse acontecido. "Tem uma história engraçada que eu conto, que hoje ela é presente, é um fato que aconteceu durante a ditaduramilitar de 1964", relata a acadêmica, que, na carreira de artista, também produziu trabalhos no cinema - como os curtas "Mães de Metal" (2009) e "Dever Cumprido" (2010).
"Éramos estudantes e fomos levadas para agitar bandeirinhas para o (presidente) Castelo Branco que estava visitando Fortaleza. Eu me lembro muito disso e transcrevo esse conto, e a reação do meu pai foi muito marcante. Ele ficou indignado porque a escola levou a gente para saudar um ditador", conta Célia, que só entendeu a postura do pai já adulta.
Revistar as memórias foi um processo complicado por se tratar de situações que envolvem a família, então, houve um cuidado para não expor ninguém. "Uma vez eu pensei em fazer na terceira pessoa, contando a história de uma pessoa, de uma menina, como se não fosse eu. Depois eu decidi colocar realmente na primeira pessoa".
"Era minha história, então, era mais coerente eu me colocar. Esse foi um processo e, de qualquer forma, um desafio porque eu também estaria revelando coisas da minha vida, inclusive fatos que se passaram com a minha família, com meus irmãos", detalha.
Por isso, Célia fez questão de que todos os familiares lessem para garantir que ninguém sairia ofendido. "As questões que são colocadas são muito mais de situações cômicas, né? Coisas engraçadas que aconteceram na nossa infância". A autora também enxerga nos seus capítulos uma forma de falar sobre uma infância que não foi influenciada pela tecnologia.
"Porque eu acho que, com esse livro, a gente pode resgatar a infância que foi de uma época que é totalmente diferente em termos de tecnologia, em termos de comportamento na infância, de brincadeiras", argumenta. O desejo dela, inclusive, é levar o livro para as escolas, a fim de mostrar para as crianças a relevância de contarem suas próprias narrativas.
Para auxiliar o leitor na viagem do tempo proposta por Célia, o livro traz ilustrações da artistavisual cearense Raisa Christina, que usou de trabalhos em aquarela. "A ilustração deve ampliar as possibilidades do texto, até mesmo transformar esse texto, mas não servir de explicação, reforço ou acessório", destaca Raisa.
A ilustradora confessa que o desafio de trabalhar com uma obra dedicada a lembranças é lidar com uma "matéria às vezes tão turva e escorregadia". "Acho importante resguardar a potência da imaginação, algo que as palavras por si só têm a capacidade de ativar", afirma Raisa, que é doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
"Então, o trabalho da aquarela é o de instigar esse processo de imaginação, próprio da leitura, sem querer dar conta de descrever todo um universo, mas apenas o insinuar com delicadeza", elucida a artista visual, que utilizou outras obras literárias como referência no uso de aquarela.
"No caso do livro da Célia, de caráter autobiográfico, a memória é a principal matéria. A gente entende que as lembranças de infância não nos pertencem com nitidez, mas podem evocar a experiência no desenrolar mesmo da narrativa, então pensamos que faria sentido tratar a ilustração como um elemento que, em diálogo com o texto, estimulasse a fabulação".
"Tempo Menina"