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A escritora cearense Marília Lovatel faz homenagem a Affonso Romano de Sant'Ann
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A escritora cearense Marília Lovatel faz homenagem a Affonso Romano de Sant'Ann

A escritora cearense Marília Lovatel faz homenagem a Affonso Romano de Sant'Anna - poeta, cronista e ensaísta que morreu no dia 4 de março
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Affonso Romano e Mariana Colasani quando participaram da XII Bienal Internacional do Livro do Ceará em 2017 (Foto: TATIANA FORTES em 16/4/2017)
Foto: TATIANA FORTES em 16/4/2017 Affonso Romano e Mariana Colasani quando participaram da XII Bienal Internacional do Livro do Ceará em 2017

Em meio à indignação com os paredões aparentemente liberados no litoral cearense para importunar o meu Carnaval e o de tantas outras pessoas, enquanto eu buscava abstrair, fingir não escutar o desrespeito criminoso invadindo o alpendre, a sala, os quartos, os banheiros, a cozinha, soube da morte de Affonso Romano de Sant'Anna. E ganhou novo sentido a resistência que me impus pelo direito de estar na casa de veraneio com a família, de não me retirar, expulsa pelos estrondos emitidos de várias direções e competindo entre si para provar a maior potência de volume. De repente, deixei de ouvir as agressões sonoras, porque a partida do escritor me inseriu em uma cúpula de silêncio pesaroso.

Dediquei a primeira crônica de fevereiro publicada no O POVO a Marina Colasanti, sua companheira por mais de cinco décadas, uma vida inteira, a minha, por exemplo — nasci em 1971, quando eles se casaram —, e agora homenageio, no início de março, quem reagiu à opressão dos anos de chumbo com poesia para o povo.

Affonso presidiu o Conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe, bem como a Fundação Biblioteca Nacional, sendo um dos responsáveis pela modernização da Instituição. Criou o Programa de Promoção da Leitura (Proler), e foi cronista e ensaísta ombreado com ícones do nosso País. A produção — tão impactante quanto um nome com duplo "f", duplo "n" e direito a um apóstrofo — transitou das páginas para as salas de aula de reconhecidas universidades nacionais e internacionais.

Em sua jornada, Affonso Romano de Sant'Anna tornou indissociáveis literatura e educação, ocupou também as redações de jornais e da TV, com o vigor de quem abraça missão sem ter minuto a desperdiçar. E não tinha. Os últimos quatro anos passou acamado por causa da Doença de Alzheimer. Ouvi da própria Marina, na visita dela a Fortaleza em 2018, relatos sobre os desafios que vivem os parentes de alguém nessa condição, sobre a necessidade de, com frequência, ajustar a agenda.

Quando perdemos a nossa ideia mais azul e os olhos verdes de Marina fecharam, vítima da Doença de Parkinson, Affonso, isolado pelo apagamento da memória imposto por sua doença, provavelmente não soube. Contudo, o seu falecimento, logo depois do dela, sinaliza que ele deve ter sentido muita falta da presença amada.

Uma longa união não atesta por si só o amor entre duas pessoas. No entanto, personalidades marcantes, seres singulares e capazes de uma admirável expressão artística e política não se acompanham por tanto tempo sem uma forte razão. E talvez os dois tenham protagonizado fora das páginas e das telas uma das histórias de amor mais intensas vividas por dois escritores. Um, inspiração para o outro. Separados foram imensos; juntos, ainda maiores. Affonso e Marina são eternos. Que ela o receba e o acolha naquele lugar de sonho onde os sofrimentos cessem, onde a música vibre no coral das vozes angelicais e onde não haja paredões nem mesmo de nuvens.

*Marília Lovatel é escritora, redatora publicitária, professora e cronista no O POVO+

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