"Esses dias estou com hiperfoco na Fernanda Torres"; "Tô com hiperfoco em comer sushi, sério"; "Esse vídeo dele me deixou 100% hiperfocada". Essas são frases que surgem na rede social X (antigo Twitter) ao se pesquisar o termo "hiperfoco". Descrito por internautas como o interesse exacerbado e contínuo em algum objeto, personalidade ou tema, o termo, que se tornou gíria, tem, na realidade, uma origem clínica.
Confeitaria, crochê, quebra-cabeças, desenho, leitura e academia foram alguns dos hiperfocos listados por Camila Lopes, de 22 anos. A estudante de medicina veterinária recebeu o diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) em 2022, por meio de um psiquiatra. Com o diagnóstico, veio a compreensão do porquê Camila não conseguia manter e cultivar seus hobbies por muito tempo.
Com duração média de um mês ou um mês e meio, Camila afirma geralmente experimentar um hiperfoco por vez. O mais curto foi o crochê, que perdurou por duas semanas, enquanto o mais duradouro segue sendo a pintura, que pratica há três meses.
Para muitos, o que parece positivo em poder se concentrar e investir intensamente em uma atividade traz consigo um contraponto oculto. "De certa forma, me torno disfuncional ao entrar em um hiperfoco, pois agora, quando não estou pintando, estou vendo vídeo no YouTube sobre isso, e acabo tendo que lutar para não negligenciar estudos, trabalho e outras responsabilidades. Até na socialização, me desanima sair de casa se não vou poder estar pintando ou compartilhando sobre meu hiperfoco com outra pessoa", afirma.
Na lista dos ônus, a estudante cita o período de limbo em que a atividade que te gerava tanto interesse passa a ser motivo de desgosto. "Você entra em um hiperfoco, passa um tempo achando aquilo o máximo e depois a atividade se torna tão desgastante que se torna impossível fazer", pontua.
Segundo dados da Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), cerca de 2 milhões de pessoas lidam com o TDAH no Brasil. Contudo, apesar de não haver uma quantificação específica para o número de pessoas que relatam hiperfoco, a previsão é que esse valor seja superior.
De acordo com André Cabral, especialista em neurodesenvolvimento, embora o hiperfoco seja comumente associado a condições neurodivergentes, ele pode ocorrer isoladamente em indivíduos neurotípicos, especialmente em contextos de alta motivação e engajamento.
"Em cenários de concentração intensa, qualquer pessoa pode experimentar um nível elevado de imersão em uma atividade. No entanto, para ser considerado clínico, o hiperfoco precisa causar impacto funcional na vida cotidiana", detalha.
Entre as soluções que André pontua estão o manejo de rotinas estruturadas, técnicas de regulação do tempo, ambientes controlados, alertas externos, como despertadores, e terapias comportamentais, a depender da condição associada. Partindo de campos de estudo distintos, mas com um ponto de encontro em comum, a psicóloga Marina Martins partilha da mesma ótica que André.
Ao analisar a usabilidade do termo, Marina ressalta que qualquer diagnóstico só é feito com base na interferência que tal sintoma tem na vida da pessoa. "Mesmo que você se identifique com um relato que vê nas redes, se não é algo que esteja lhe causando sofrimento e interferindo em seu desenvolvimento pessoal, não precisará ser tratado", enfatiza.
Ao ser questionada sobre a disseminação de termos como hiperfixação e hiperfoco, Marina resgata uma reflexão sobre o comum fenômeno que acontece quando nomenclaturas e conceitos da saúde se tornam virais pelos motivos errados.
"Ao atender adolescentes, muitos deles já chegam acreditando possuir algum diagnóstico, alegando que tinham visto um vídeo no TikTok que indicava TDAH com base nas curtidas da pessoa. Compreendendo esse contexto, o termo hiperfoco está quase sendo usado corretamente. Apesar da maioria não entender que se trata de um estado de atenção, eu sigo considerando esse emprego um gol na trave, diante de outros erros graves que vemos", diz Marina.
Ainda, como tentativa de frear esses diagnósticos de internet e contrapor a desinformação, a psicóloga indica usar a internet a nosso favor. "Existem ótimos profissionais da psicologia que estão nas redes sociais e produzem conteúdo explicativo sobre diferentes fenômenos. Acredito que o lado bom dessa viralização é que se torna possível conscientizar as pessoas a buscarem respostas para as suas dúvidas", destaca.
Hiperfoco
De acordo com o especialista em Neurodesenvolvimento André Cabral, o hiperfoco é um estado de atenção focalizada intensa e sustentada. Não exclusivamente, mas geralmente é associado a condições como Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Transtorno do Espectro Autista (TEA). Ocorre quando a pessoa se envolve profundamente em uma atividade de interesse, a ponto de ignorar estímulos externos e ter dificuldade em mudar o foco.
Hiperfixação
Segundo a mestranda em Psicologia da Educação, Desenvolvimento e Aconselhamento, Marina Martins, a hiperfixação é um termo similar à "obsessão", sendo mais facilmente atrelado a outras patologias além do TDAH e TEA. Pode ser direcionada a um assunto, objeto, comida ou personagem que a pessoa associa a grande prazer ou desprazer. Segundo a psicóloga, é muito comum no Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), por exemplo, o paciente hiperfixar em pensamentos intrusivos.
Interesse Especial
Conforme conta o neuropediatra André Cabral, o interesse especial é um conceito muito associado ao Transtorno do Espectro Autista (TEA) e se refere a temas de grande interesse para a pessoa autista. Diferente do hiperfoco, que pode ser temporário, o interesse especial pode durar anos e ter um impacto significativo no aprendizado e no desenvolvimento social. Segundo a psicóloga Marina Martins, aqueles que possuem interesses especiais geralmente encontram uma área específica na qual possam absorver uma grande quantidade de conhecimento e que seja passível de gerar um maior sentido de recompensa.