Quando subiu ao palco do Oscar em 2020, Bong Joon-ho sabia que estava dividindo em duas partes a história do mundo. Com um conflito elétrico entre classes sociais, reconhecível por qualquer sociedade capitalista, “Parasita” se tornou um sucesso de crítica e público em todos os países que estreou, incluindo os EUA que lhe concederam o Oscar de Melhor Filme, primeira vez que um filme em língua não-inglesa venceu o maior prêmio da cerimônia.
Para fugir das expectativas e comparações com a trama desse sucesso, o cineasta sul-coreano fugiu para a comédia, campo que ele até já tem bastante intimidade. Protagonizado pelo astro Robert Pattinson, “Mickey 17” é uma história do futuro. Em 2054, a clonagem humana foi proibida na Terra por conflitos morais, éticos e filosóficos, mas segue sendo permitida fora dela em missões de exploração espacial.
Mickey se recruta voluntariamente e se torna um “descartável” para testes científicos, estando à disposição até a própria morte. Quando isso acontece, seu corpo é descartado e substituído por um clone, que nasce com todas as lembranças atribuídas.
De certa forma, é como se os vários fossem um só, separados por um breve intervalo inconsciente. A trama engata quando sua 17ª versão é declarada morta, por engano, enquanto a 18ª já estava sendo produzida. Contra todas as regras do universo, agora existem dois Mickeys.
Na sua camada mais explícita, Bong Joon-Ho continua a fabulação sobre as crises desse presente no trabalho, no consumo e na exploração da natureza. Como Expresso do Amanhã (2013), Okja (2017) e o próprio Parasita (2019), a história constrói sua discussão ao redor de uma opressão que não precisa tratar seus operários como “seres humanos”, já que são clones artificiais.
Robert Pattinson, porém, traduz essa angústia de um jeito nada óbvio. Ele se desfaz da sua pose grave (“Batman”, “O Farol”, “O Bom Comportamento”) e romântica (“Lembranças”, “Crepúsculo”) para criar alguém extrovertido, cheio de cacoetes, caretas e reações súbitas, o que rende cenas memoráveis.
Quando os dois Mickeys se assustam ao se encontrarem pela primeira vez, por exemplo, um recatado e o outro devasso, a namorada sugere um ménage entre os clones.
Seu personagem é moldado para soar sempre engraçado, mesmo convivendo com o limite inevitável da sua vida, prestes a acabar nos próximos dias ou horas.
Como ele tem a plena consciência de que morrerá, de novo e de novo, a história vai nos mergulhando em uma comédia recheada de melancolia, sensação especialmente potencializada pela trilha sonora que opera num tom mais cordial para cenas absurdas.
Vemos Mickey ter sua mão decepada num acidente, ser atacado por bichos e até ser lançado ao fogo. É como se o filme sentisse pena daquela figura, a todo momento, fazendo-nos pensar sobre qual a razão de ele aceitar esse trabalho – uma pergunta recorrente no mundo real do capitalismo, tirando a fantasia.
Baseado no livro de Edward Ashton, o filme acaba se atropelando quando tenta dar a essa história um tom épico com cenas de ação numa longuíssima sequência que acaba deixando de lado o próprio conflito dos clones.
Como se voltasse à superporca que foge do abate em “Okja”, Bong decide encerrar com uma discussão reciclada sobre exploração do meio ambiente em cooperação com seus bichos que são tão descartáveis quanto os “humanos” iguais ao Mickey.
Com uma vaga emulação de Donald e Melania Trump, Mark Ruffalo e Toni Collette assumem uma caricatura tão descarada e repetitiva que acabam se tornando uma piada com prazo curto de validade. De toda forma, funciona como contraponto radical à ingenuidade de Mickey ao se entender como um “bom operário” para aquele sistema sem qualquer carinho ou empatia.
“Mickey 17”, no entanto, também sabe não se levar tão a sério mesmo quando está discutindo a desumanidade que existe do lado de fora da ficção, deixando que o tom simpático de Pattinson guie todas as emoções.
Ao olhar para a crueldade de um mundo condenado até fora da Terra, sem rota de fuga, ele enxerga esperança e sabe rir na hora certa. Pode acabar sendo julgado como algo que “não está à altura” da filmografia e do legado de um cineasta que chacoalhou o mundo, mas o fato de Bong Joon-Ho não se importar com isso é o que faz desta uma aventura tão divertida.
Mickey 17