Obras como o vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional, "Ainda Estou Aqui", do diretor Walter Salles, que abordam o período da ditadura militar no Brasil, se mostram cada vez mais necessárias. Apesar de ter sido um período de violência, a ditadura ainda encontra seus apoiadores País afora.
Daí a importância de produtos culturais como o filme de Walter Salles e a HQ do franco-brasileiro Mathias Lehmann, "Chumbo". Lançada no Brasil pela Editora Nemo, a produção conta a história dos irmãos Severino e Ramires Wallace - passando desde a infância em Minas Gerais, muito antes do golpe militar de 1964, até anos após a redemocratização.
Lehmann mescla o real com o ficcional enquanto navega pela história do Brasil. Sobrinho do escritor Roberto Drummond, que inspirou um de seus protagonistas, o autor fez uma pesquisa e aborda a ditadura através das diversas perspectivas, deixando claro o papel empresarial no apoio ao golpe de 1964.
Enquanto Severino se torna um jornalista e apreciador da arte, seu irmão, Ramires, segue o caminho do pai como empresário e apoiador do exército "anticomunista". Apesar de, no início, Severino ser visto como a "peça desagradável" da família, Lehmann faz questão de evidenciar a hipocrisia de Ramires. Mas se engana quem pensa que o autor transforma Severino em um herói idealizado da resistência e da luta armada.
Apesar de, sim, fazer parte da resistência contra a ditadura militar, o personagem entra por acaso na luta armada e não demonstra qualquer aptidão. Ao contrário da sindicalista Iara Rebendoleng, amiga de infância do protagonista, que entende desde jovem a importância da organização trabalhista e popular. Filha de um também sindicalista, morto a mando do pai de Severino, a personagem é um dos pontos mais interessantes do quadrinho.
A narrativa acompanha os dois irmãos paralelamente, mostrando como cada um deles lida com o momento histórico, explorando outros temas além da política - como sexualidade, classe e raça. Outro "personagem" importante na trama, que nos ajuda a entender estes temas, é a família Wallace, que, além de Severino e Ramires, conta com as irmãs e a mãe. As personagens funcionam como um guia para entendermos ainda mais o momento histórico apresentado nas páginas da HQ.
Visualmente, a obra é marcada por um traço expressivo que remete a desenhos da época, com tons de preto e branco e sombras que reforçam a atmosfera da história através de enormes painéis que recriam momentos históricos reais do Brasil. Lehmann utiliza contrastes e texturas detalhadas para transmitir as expressões de seus personagens.
Além disso, o autor incorpora cartazes, capas de jornais e até imagens televisionadas da época para trazer ainda mais realismo à história dos dois irmãos, dando um tom mais autêntico à narrativa. O quadrinho também é repleto de referências à cultura brasileira, "escondidas" em diversas páginas, o que é, sem dúvidas, uma das grandes qualidades de "Chumbo".
A hipocrisia de Ramires fica evidente aos olhos do leitor, que o vê pregando um discurso que não pratica de forma alguma, além de ser um fantoche das vontades do estado ditatorial, que não oferece vantagens reais além da permissão para ser um fascista. Mas se engana quem acha que o autor ofusca os problemas e defeitos do outro lado da moeda. Isso fica muito claro quando ele retrata o dia a dia de Severino na resistência armada.
Apesar dos problemas, o roteiro faz questão de deixar claro qual a opinião do autor sobre o lado certo da história. A HQ mostra, através de páginas impactantes, o que o regime fazia com sua oposição, torturando-a de forma covarde e cruel, sem qualquer humanidade.
E se o passado nos ensina algo, é que ignorar a história significa abrir caminho para sua repetição. Em tempos nos quais vozes autoritárias ainda encontram espaço para se fortalecer e pedir a volta da ditadura abertamente, obras como "Chumbo" cumprem um papel essencial: manter viva a memória daqueles que lutaram contra a repressão e relembrar que a democracia é um bem que precisa ser constantemente defendido.
HQ "Chumbo"