A frase que nomeia este texto foi dita por Caetano Veloso, em 21 de maio de 2016, durante a manifestação “Ocupa MinC”. O clamor do cantor veio em cima de um palco no período em que o Ministério da Cultura (MinC) sofreu mais uma tentativa de apagamento.
Muito antes disso, há 40 anos, o Brasil vivia um momento histórico: o fim da ditadura militar e o começo de um governo democrático. Em 15 de março de 1985, a cultura deixou de ser um pedaço marginalizado do País para se tornar um ministério próprio com José Sarney na presidência.
As quatro décadas de criação, no entanto, não representam 40 anos de uma pasta sólida na política brasileira, pois a mesma foi feita e desfeita em diversos atravessamentos de crises democráticas.
A comemoração deste ano se faz como um ato de resistência e insistência da valorização e preservação da arte brasileira, setor que mais sofreu ao longo dos anos com a ascensão da extrema-direita. Conforme lembra o cearense Fabiano Piúba, secretário de Formação, Livro e Leitura do MinC, “o direito à cultura é fundamental para o exercício pleno da democracia”.
“No momento em que a gente vive, não só no contexto brasileiro, mas também no internacional, o Ministério da Cultura é uma ferramenta importante para a garantia do Estado Democrático de Direito”, complementa Piúba, que também é ex-secretário da Cultura do Ceará.
“Chegamos a um recorde de 3,5 mil salas de cinema em todo o País, elas registraram uma renda total, entre filmes brasileiros e estrangeiros, de R$ 2,5 bilhões. Alcançamos reconhecimento e premiações internacionais e até o Oscar. Em 2023 e 2024, foram disponibilizados ao setor produtivo do audiovisual cerca de R$ 4,8 bilhões em recursos do Fundo Setorial do Audiovisual e leis de incentivo, geridas pela Ancine”, recorda a ministra da cultura Margareth Menezes, em entrevista ao O POVO, se referindo a Agência Nacional do Cinema (Ancine).
Após sua última extinção, no Governo Bolsonaro, outras linguagens artísticas, além do cinema, também puderam retornar ao crescimento com o investimento do MinC.
“Há pesquisas que apontam que os efeitos do investimento em cultura são excepcionais. A Fundação Getúlio Vargas (FGV) realizou estudo sobre a Lei Paulo Gustavo (LPG) no Rio de Janeiro, que revelou que, para cada R$ 1 investido pela lei, o retorno é de R$ 6,51, demonstrando a capacidade do setor cultural e de economia criativa de impulsionar a atividade econômica local”, diz a ministra.
Margareth Menezes: "O passado serve de lição"
O POVO - Por que o MinC precisa existir como uma pasta própria?
Margareth Menezes - Cultura e democracia andam de braços dados. Não por acaso, o Ministério da Cultura foi criado em 1985, no período de redemocratização do nosso País, resultado de intensas mobilizações sociais que defendem a independência do setor cultural. A evolução do Ministério da Cultura acompanha o próprio ritmo da democracia brasileira: quando o País vivenciou maior abertura e participação, a pasta se fortaleceu, ampliando políticas públicas e valorizando a diversidade cultural. Por outro lado, em períodos de retrocesso democrático, o MinC foi rebaixado ou mesmo extinto, evidenciando sinais de enfraquecimento institucional. O Ministério da Cultura precisa existir com sua independência e recursos próprios para promover as políticas públicas de fomento cultural, defender os direitos dos fazedores de cultura e promover cada vez mais ações que impulsionam a cultura como um vetor de geração de emprego e renda para a sociedade.
OP - Quais erros do passado não podem ser repetidos? E quais as prioridades atuais do Ministério até o fim deste mandato?
Margareth - Acredito que o passado serve de lição. Temos que defender a independência e a magnitude do setor criativo brasileiro, enxergando e valorizando a economia criativa como um setor fundamental da nossa economia, assim como o turismo, a alimentação, os serviços. A prioridade da minha gestão é a nacionalização das políticas culturais realizadas pelo MinC. Tenho como desafio fazer as ações chegarem na ponta, o Brasil é gigante e temos necessidades específicas em cada território.
OP - Você é a primeira mulher negra a assumir o Ministério da Cultura. Para além do valor simbólico, o que a classe artística tem a ganhar com isso?
Margareth - Todos ganham com a representatividade. Estabelecer políticas públicas que priorizem, também, grupos historicamente menos contemplados ou regiões e territórios menos favorecidos, significa ampliar o alcance das ações. Nossas ações e editais são afirmativos, inclusivos e acessíveis, garantindo, sempre que possível, a representatividade das mulheres, das pessoas negras, quilombolas, indígenas e população LGBTQIA.
Linha do tempo do MinC
Em 14 de novembro de 1930, o governo provisório de Getúlio Vargas deu início a primeira organização que englobava a cultura. No Decreto nº 19.402, ele criou o "Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública", que, dentre as atribuições, prestava assistência à Escola Nacional de Belas Artes, ao Museu Nacional, à Biblioteca Nacional, ao Museu Histórico Nacional e à Casa de Rui Barbosa.
Em 12 de fevereiro de 1968, aconteceu a primeira reunião nacional dos Conselhos de Cultura (CFC) - criado pelo Decreto-Lei nº 74, de 21 de novembro de 1966, pelo presidente Castelo Branco com o objetivo de elaborar um Plano Nacional de Cultura.
Em 15 de março de 1985, José Sarney tomou posse como presidente do Brasil, logo após o fim da Ditadura Militar e a morte de Tancredo Neves. Neste período, ele separou educação e cultura em duas pastas, criando o Ministério da Cultura (MinC) pelo Decreto nº 91.144 para o "enriquecimento da cultura nacional".
Em 2 de julho de 1986, foi decretada a Lei nº 7.505, a primeira legislação federal de incentivo fiscal à produção cultural. Ela estabelece benefícios fiscais relativos ao imposto de renda concedidos a operações de caráter cultural ou artístico.
Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a mais recente Constituição Federal do Brasil, conhecida como a "Constituição Cidadã". No Artigo 215, a Carta Magna estabelece que o Estado deve garantir aos cidadãos o pleno exercício dos direitos culturais, o acesso às fontes da cultura nacional e a proteção das manifestações das culturas populares, indígenas, afro-brasileiras e de outros grupos formadores da nossa cultura. Já no Artigo 216, é declarado que o Estado é responsável pela proteção do patrimônio cultural brasileiro.
No Governo Collor (1990-1992), as políticas culturais saíram das prioridades da gestão nacional. Em 15 de março de 1990, o Ministério da Cultura foi transformado em uma "secretaria especial" vinculada à Presidência da República. Pouco depois, em 12 de abril, os benefícios fiscais da Lei 7.505/1986 foram extintos pela Lei 8.034/1990, e, posteriormente, também pela Lei 8134, de 27 de dezembro de 1990.
Em 23 de dezembro de 1991, foi aprovada a Lei 8.313/1991, conhecida como Lei Rouanet, em homenagem ao seu criador Sérgio Paulo Rouanet. A medida, que busca incentivar a produção, preservação e difusão cultural, instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), responsável por captar e repassar recursos para o setor cultural.
Diante da renúncia de Fernando Collor em 29 de dezembro de 1992, quem assumiu o poder foi Itamar Franco, que recriou o Ministério da Cultura em pasta sólida. Quem assumiu o MinC nesse momento foi o acadêmico Antonio Houaiss.
Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência da República em 1º de janeiro de 2002, com o artista Gilberto Gil à frente do MinC. O baiano ficou no comando da pasta até metade do segundo mandato do presidente, com gestão marcada por reformulações em busca de alternativas para as leis de incentivo.
Em 2005 ocorreu a primeira Conferência Nacional de Cultura (CNC), que teve como tema "Estado e Sociedade Construindo Políticas Públicas de Cultura". O evento teve a participação de cerca de 60 mil pessoas de 17 estados e mais de mil cidades, que definiram o Sistema Nacional de Cultura (SNC) como uma das prioridades públicas.
No mesmo ano, houve o Decreto nº 5.520/2005, que criou o Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC); e a Emenda Constitucional nº 48, que estabeleceu o Plano Nacional de Cultura (PNC) com caráter plurianual voltado para desenvolvimento de atividades culturais voltadas à defesa e valorização do patrimônio cultural, à formação para a gestão da cultura, à democratização do acesso à cultura e à valorização da diversidade étnica e regional.
Em 2 de dezembro de 2010, foi instituída a Lei 12.343/2010, que aprovou o Plano Nacional de Cultura - PNC 2010-2020, conforme com o parágrafo 3º do art. 216 da Constituição Federal.
Pela Emenda Constitucional nº 71, o Sistema Nacional de Cultura foi integrado à Constituição Nacional com o Art. 216-A, para organizar a gestão pública de cultura em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, a fim de criar políticas públicas de cultura, "democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da federação e a sociedade".
Michel Temer assumiu o governo interinamente em 12 de maio de 2016. No dia da posse, o político decretou a extinção do MinC, transformando-o numa secretaria subordinada ao Ministério da Educação.
Como reação à decisão, aconteceu o movimento "Ocupa MinC", em que artistas, gestores e ativistas culturais do País se reuniram em diversas cidades e ocuparam dezenas de prédios públicos em protesto ao fim do ministério. A manifestação incluiu um show de Erasmo Carlos e Caetano Veloso cantando juntos no Palácio Gustavo Capanema, sede do Ministério da Cultura no Rio de Janeiro. "O Minc é nosso. É uma conquista do Estado brasileiro, não é de nenhum governo", disse Caetano, durante o show.
A pressão fez com que o governo voltasse atrás e anunciasse no dia 21 de maio do mesmo mês a recriação do Ministério da Cultura, sob comando de Marcelo Calero.
Na gestão de Jair Bolsonaro, que tomou posse em 1º de janeiro de 2019, o Ministério da Cultura foi novamente extinto e se tornou uma secretaria especial, desta vez alocada no Ministério da Cidadania e, depois, no Ministério do Turismo. A ação partiu da Medida Provisória nº 870, convertida posteriormente na Lei nº 13.844.
Com isso, ficou a cargo de outros ministérios medidas como a política nacional de cultura, a regulação dos direitos autorais e a proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural.
Todo o período do Governo Bolsonaro foi considerado desafiador pela classe artística, considerando fatos como a paralisação de atividades presenciais devido à Covi-19. A cultura do Brasil foi marcada por cortes de recursos, paralisação de editais e desvalorização do profissional artista.
O dia 1º de janeiro de 2023 marca o fim do Governo Bolsonaro e a posse de Lula na Presidência da República. Neste novo momento, o MinC foi reconstruído com orçamento ampliado, dando prioridade a novas políticas públicas para valorização, investimento e proteção da cultura brasileira. Quem assumiu o comando da pasta foi a artista Margareth Menezes.