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'Criaturas Noturnas' transforma denúncia policial em literatura
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'Criaturas Noturnas' transforma denúncia policial em literatura

No livro "Criaturas Noturnas", a autora Leila Mottley expõe uma denúncia de exploração sexual por meio da ficção
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Foto: COMPANHIA DAS LETRAS/DIVULGAÇÃO Capa da edição brasileira de "Criaturas Noturnas"

Você já colocou o primeiro episódio de uma série, despretensiosamente, e quando olhou pela janela já era noite e a temporada estava terminando? Sensação melhor que essa apenas quando acontece com um livro. E "Criaturas Noturnas", de Leila Mottley, pode ser um bom concorrente para essa missão.

Como plano de fundo, a cidade californiana de Oakland, onde a adolescente Kiara lida com turbulências em todas as áreas da vida e é forçada a amadurecer para sobreviver. Ela vive com o irmão mais velho - que acredita que trabalhar atrapalha sua vocação de ser um rapper famoso - o pai morreu e a mãe está em uma casa de reabilitação. E o aluguel já atrasado tende a aumentar o valor.

A protagonista encontra na prostituição uma solução rápida para a escassez de dinheiro, mas logo descobre os sufocos da profissão. "Criaturas Noturnas" é inspirado em um caso verídico, no qual membros do Departamento de Polícia de Oakland e de outras regiões exploraram sexualmente uma jovem e tentaram encobrir o ocorrido. Em nota da autora, ao fim do livro, Leila escreve que pensava no caso constantemente, mesmo após a mídia seguir em frente com outras pautas.

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"Continuei me perguntando sobre esse evento, sobre essa menina e outras que não tiveram manchetes, mas mesmo assim experimentaram a crueldade do que a força policial pode fazer com o corpo, a mente e o espírito de uma pessoa", escreve Mottley.

A vida de Kiara poderia ser a de qualquer mulher norte-americana, mas o debate racial presente na obra acrescenta um ponto na lista de razões do porquê dessa história ser tão importante. O ano de 2022, quando "Criaturas Noturnas" foi publicado, foi o pior da década para violência policial nos Estados Unidos. Ao menos 1.176 pessoas foram mortas pelas forças de segurança dos EUA, segundo um projeto da ONG Mapeando a Violência Policial.

"Agora só tem eu e o policial. Não é engraçado ficar com medo de ter sido salva?", pensa Kiara. "(...) e é bem como falaram que aconteceria e já estou tão acostumada que nem fico triste. Essa é só mais uma noite. Tantos jeitos de caminhar pelas ruas e eu sou apenas uma menina com uma pele".

O texto de Mottley em "Criaturas Noturnas" conversa harmoniosamente com a idade da protagonista. É uma escrita jovem, por vezes irreverente e impulsiva, mas que expõe a dor de Kiara, uma menina forçada a crescer para cuidar de outros, menos de si mesma. A obra transborda abandono, do Estado e da família.

Um oásis em meio às crises é a relação de Kiara com seu vizinho de nove anos, Trevor, uma criança negligenciada pela mãe usuária de drogas. Os dois são um pequeno alívio ao leitor que pode ficar atordoado com tantas tragédias, pois a pureza do companheirismo das crianças carrega uma sensação de esperança.

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"Criaturas Noturnas" tem muitas camadas, a autora tomou tempo para desenvolver aspectos secundários da vida de Kiara, transformando uma personagem em pessoa real. Mas um livro de 300 páginas contendo uma história de tantas nuances pode pecar deixando de lado o desenvolvimento de algum personagem.

Por vezes, podemos questionar se a autora decidiu escrever um momento de desabafo para contar rapidamente um acontecimento passado importante para a história, transformando a fala da personagem em uma cena de flashback.

É louvável, todavia, a capacidade da autora de escrever o que quer transmitir logo em seu primeiro livro. Parafraseando Stephen King: as coisas mais importantes são as mais difíceis de dizer. E Mottley consegue dizê-las. Podemos esperar grandes feitos da criadora de Kiara.

Leila Mottley debutou como escritora com o livro "Criaturas Noturnas", que já foi best-seller do New York Times e selecionado para o Clube da Oprah - coletivo de leitura criado pela apresentadora americana Oprah Winfrey. A obra ainda foi listada para o Prêmio Booker de 2022, tornando Mottley a autora mais jovem a ser indicada ao certame.

Capa da edição americana de
Capa da edição americana de "Criaturas Noturnas"

Julgando um livro pela capa

Vamos revisitar a frase "não julgue um livro pela capa". Nos últimos anos, entrou na moda utilizar desenhos 2D com traços mais orgânicos em capas de livros de romances adolescentes. Com a popularização dessa categoria literária, o estilo artístico vem sendo usado em livros não tão infantis, contraindicados para pessoas menores de idade.

Essa utilização de desenhos e traços infantis em livros de romances adultos proporcionou um debate nas redes sociais sobre o que é adequado colocar em uma capa de livro ou não para transmitir a história de forma correta.

É possível que, para seguir uma tendência, a fórmula do que vende fora aplicada na versão brasileira de "Criaturas Noturnas", e ela não merecia esse tratamento. As duas capas da obra, a original norte-americana e a brasileira, têm o desenho de uma mulher com tranças, elemento importante no desenvolvimento da história de Kiara.

De um lado é possível ver movimento, profundidade e o contraste de cores vibrantes. É uma capa forte, que transmite o peso da história. Do outro, as costas de uma pessoa parada expõem um contraste menor entre os elementos do desenho e as cores, com traços sem muitos detalhes e sem profundidade. Até que ponto seguir tendências pode prejudicar a identidade de um livro?

A capa é o primeiro elemento que enxergamos quando olhamos uma obra literária, entender a história contada pela autora ou autor e conseguir transmiti-la com respeito e equivalência é um trabalho difícil. Julgar um livro pela capa é inevitável, afinal, ela é a primeira promessa feita ao leitor. Se a capa é um convite, que convite está sendo feito?

Criaturas Noturnas

  • De Leila Monttley
  • Editora Companhia das Letras
  • Valor do livro: R$ 79,90

 

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