Para transmitir a história de seu povo, o cineasta cearense Kiko Alves precisou mergulhar na sua própria ancestralidade, a de homem negro e gay do interior do Ceará. Com “Um Lugar Chamado Aruanda”, seu primeiro trabalho de longa-metragem, o artista pretende documentar as vivências das comunidades negras de Itapipoca para que as atuais e futuras gerações tenham acesso a sua história.
O documentário, que deve estrear em junho deste ano, é uma iniciativa de Kiko para trazer para o audiovisual a representatividade de suas raízes catimbozeiras, religião e cultura afro-indígena que mistura elementos de magia, religião e ervas sagradas.
“Por volta de 2010, eu comecei a querer entender a história dos negros do Ceará. Eu comecei a pesquisar e acabei me tocando que eu estava tentando contar as histórias sem saber nem a minha própria. Por isso, eu comecei a me direcionar, ler documentos de cartório e ouvir mais o que os meus familiares mais velhos me contavam”, explica Kiko.
Sobre as suas referências, o cineasta destacou o Catimbó, uma manifestação muito antiga, semelhante a Umbanda, que está presente na sua família há, pelo menos, 150 anos, desde seu bisavô. “O nome do filme, ‘Aruanda’, tem relação com isso. É uma palavra muito importante para os povos da diáspora, do Catimbó, e é um termo corruptela de ‘Luanda’, que está relacionada às características místicas para os povos de terreiro”
Nesse sentido, uma das protagonistas de “Um Lugar Chamado Aruanda” é justamente a avó de Kiko, Dona Georgina, de 98 anos. Ele conta que ela foi responsável por sempre “manter a memória da família funcionando”, pois era ela quem contava a história dos parentes e da ancestral mais antiga da família, a Mãe Miranda.
“Ela (Georgina) sempre foi muito festeira, adorava dançar e sempre trazia as histórias do forró e do ritual de São Gonçalo, isso foi material base para pensar o filme”, relata ele, que também compartilha que sua metodologia para gravar o documentário partiu da estratégia de escutar as conversas ao invés de fazer entrevistas do modo acadêmico.
Kiko destaca que, para conseguir os relatos que lhe interessavam para o documentário, se inspirou no modo de gravação dos filmes “Cabra Marcado Para Morrer”, de Eduardo Coutinho, e “Notturno”, do italiano Gianfranco Rosi. “Eu pensei em reunir minha vó com os irmãos e amigos, esses encontros geravam conversas”, diz.
“Eu coloquei ela em territórios da memória dela que despertam vontade de falar, que é essa ideia de Aruanda. Por exemplo, no Poço Verde, um grande rio de Itapipoca, ela lembra e diz que só não morreu de fome e nem deixou de alimentar os filhos no passado porque pescava alí. Ela conta que pescava e vendia parte do peixe para comprar o resto da comida que ia acompanhar a proteína. E foi assim que eles sobreviveram, já que ela era uma mãe solteira nos anos 1950”, relata.
Segundo ele, a base do documentário são os relatos de sua família, mas ele não se restringe a contar apenas histórias familiares. O cineasta, que produz a obra por meio do auxílio da Lei Paulo Gustavo, conta que as pessoas com quem conversou o ajudaram a criar conexão com outras pessoas do território e, assim, foi compondo seu filme com a representatividade negra de Itapipoca.
Em um dos episódios de gravação, durante uma festa para Exú, Kiko descobriu um novo primo, também neto de Dona Georgina e filho de seu tio, numa relação extraconjugal. “A gente se olhou e ficou pensando ‘é sério?’, eu fiquei muito emocionado. Ele - o Tales - é um membro da minha família que eu não fazia a menor ideia de que existia, eu não procurei por ele, mas os ancestrais nos conectaram e hoje somos muito amigos”, alega o cearense.
Outra curiosidade do filme é sobre a sua musicalidade. Todas as músicas presentes no documentário foram gravadas pelos sons de atabaque que os ogãs de Itapipoca tocam, captados no terreiro de Vavá, que fica no bairro da Estação.
“Nas conversas que tive com o Vavá, que é um ogã muito versado na magia, ele me disse que a batida do atabaque da macumba em Itapipoca é diferente, mais cadenciada e mais lenta. Eu fiquei com isso na cabeça e alterei todo o projeto para que a trilha sonora fosse só desses sons”, sustenta Kiko.
Para além das questões técnicas do filme, gravar e elaborar “Um Lugar Chamado Aruanda” foi um desafio para o diretor, que passou por uma grande e sensível imersão na sua própria vida durante o trabalho.
“Para mim, fazer cinema e gerar essas imagens é muito importante porque, pessoalmente, eu não tenho esses documentos. Minha família é muito pobre, passou muitas necessidades e a imagem não era uma prioridade. Eu não tenho nenhuma foto minha antes dos 20 anos, não tenho o registro de como eu me parecia”, desabafa Kiko.
Ele acrescenta que teve, graças à insistência de sua mãe, um acesso melhor à educação e pode construir uma narrativa diferente de seus ancestrais. Anos depois, com uma câmera na mão e muito estudo, ele voltou para documentar sua própria história.
“Tinham dias de gravação que eu ficava tão emocionalmente cansado que eu voltava e dormia, não conseguia mais fazer outra coisa. Eu tento não romantizar as dores e as misérias., mas tem sido um grande desafio, porque a academia ensina a gente a produzir cinema de uma forma muito mercadológica e, às vezes, a gente precisa desconstruir um pouco do que a gente aprendeu para construir uma história real e conectada com as pessoas”.
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