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O impacto da série "Adolescência" entre pais e professores; confira análise
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O impacto da série "Adolescência" entre pais e professores; confira análise

A psicóloga e psicanalista Sabrina Matos analisa "Adolescência", série que ganhou ecos entre pais e professores
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legenda (Foto: divulgação/netflix)
Foto: divulgação/netflix legenda

*Texto da professora Sabrina Matos/ESPECIAL PARA O POVO

A série britânica "Adolescência", dirigida por Philip Barantini, é uma pancada no estômago. Irretocável. São quatro episódios filmados em plano sequência que prendem o espectador do começo ao fim. Sim, a série fala sobre dor, sobre um mundo muitas vezes irrespirável onde pais e mães encontram-se perdidos, "desbussolados". Fala sobre os efeitos do uso desmesurado das redes sociais e seus códigos cruéis que podem ser devastadores. Fala sobre professores, igualmente perdidos.

É impactante porque traz um recorte real do tempo em que vivemos, dos modos de subjetivação instituídos, dos narcisismos, dos desencontros. "Adolescência" mostra uma família estruturada, tipicamente de classe média inglesa, que vivia como muitas outras até o filho caçula, Jamie (Owen Cooper), ser detido acusado de ter cometido um crime brutal: esfaquear uma colega da escola.

O roteiro nos convoca a pensar acerca do que está acontecendo com os nossos jovens, mas também, o que está acontecendo com cada um de nós, mães e pais, tios e tias, avôs e avós. O que está acontecendo com o nosso mundo? O que está acontecendo com a nossa humanidade? E daí a pergunta que não pode calar: o que temos a ver com isso?

No primeiro dia - primeiro episódio - a Polícia invade a casa dos Miller e leva o adolescente Jamie, 13 anos, à delegacia, pois ele foi acusado de ter cometido um crime. No local, o garoto passa por todos os procedimentos ao lado de seu pai (Eddie Miller, vidido por Stephen Graham). Jamie nega a autoria, mas, ao fim, os investigadores mostram um vídeo no qual não há dúvida de que ele cometeu o crime.

No terceiro dia - segundo episódio - os investigadores vão até a escola na qual Jamie estuda para buscar explicações para o crime hediondo e é justamente em uma conversa com seu filho de 15 anos, também aluno da mesma escola, que um personagem pai/policial percebe que não está entendendo o que aconteceu.

Todos os alunos da escola já sabiam o que estava acontecendo. Os códigos utilizados no Instagram eram familiares a eles, mas não ao pai/policial. A garota assassinada parecia simpática na rede social, diz o garoto ao pai/policial, mas não era aquilo. É a manosfera, diz o garoto ao pai/policial. Sites e blogs que promovem a masculinidade, a misoginia e a oposição ao feminismo. Daí a regra 80/20, ou seja, 80% das mulheres sentem atração por 20% dos homens. As mulheres precisam ser enganadas. Não vão ser conquistadas de um jeito normal porque elas "são sem noção".

O garoto explica ao pai/policial que a garota assassinada falou que Jamie seria solteiro para sempre, que ele iria morrer "incel" e que seria virgem eternamente. E o que a garota falava no Instagram era curtido por toda a galera. Todos estavam concordando com ela. Daí o pai/policial pergunta: isso é bullying? O filho, então, diz que foi chato ver o pai sem saber o que fazer, sem entender nada do que estava acontecendo. O pai agradece e diz que, de fato, está perdido.

E é isso mesmo. Estamos perdidos. "Desbussolados". Os códigos que circulam nas redes sociais seguem uma sintaxe desconhecida para pais, famílias, professores. É outra língua. Não por acaso, logo depois da conversa com o filho, o pai/policial convida o garoto para lanchar. Ainda no carro, querendo puxar conversa, pergunta quais foram as aulas naquele dia e o filho responde: matemática, química e francês. Equações, metamorfoses e uma outra língua. O pai acha engraçado. A cena termina com uma tomada de cima focando a cena do crime com as homenagens à Katie ao som de "Fragile", de Sting.

Nessa canção de 1988, o inglês nascido em Wallsend fala da nossa vulnerabilidade e da necessidade de reconhecermos nossas fragilidades, fala das cicatrizes emocionais causadas pela violência, da chuva como um símbolo de renovação, fala de cura e de reflexão. Vale destacar que, na série, a música é cantada por um coral de crianças.

O terceiro episódio inicia com a demarcação temporal de que já se passaram sete meses do crime. A psicóloga Briony Ariston chega para um encontro com Jamie em um centro sócio-educacional onde o adolescente aguarda o julgamento. Faz questão de levar chocolate quente com marshmallow, o que deixa o jovem contente. O que demarca sua posição diferente de um outro profissional psicólogo que também avaliava Jamie. Leva um sanduíche feito por ela, o que faz com que Jamie a associe com a mãe, que, segundo ele, também faz sanduíches. Ao invés de ser direta, a psicóloga insiste tratar-se de uma conversa e pergunta sobre o pai de Jamie, afinal de contas o genitor foi escolhido pelo filho desde o início para ser seu representante legal.

A conversa caminha para o que o pai faz nas horas vagas. Ele gosta de esportes, diz Jamie. O garoto diz sentir que o pai ficava envergonhado por ele não ser bom nos esportes. Ele fica bastante irritado com a psicóloga e grita quando o tema da masculinidade é trazido à tona. A psicóloga sai da sala dizendo que vai buscar um chá. Quando retorna, deixa claro para Jamie que está ali para saber qual a percepção dele acerca do ocorrido. Na sequência, a conversa segue com questões sobre relacionamentos com garotas, sobre não se achar bonito, sobre a conta dele no Instagram. Jamie diz que segue várias mulheres. Questionado sobre o porquê postar fotos de si mesmo, se seria para divertir-se com seus amigos, o adolescente nega e, logo em seguida, em um movimento de projeção com a psicóloga, afirma ter assustado a "doutora" quando gritou.

Certamente, os encontros com a psicóloga produziram efeitos no jovem - visto que, mais na frente, ele muda seu depoimento. Não foi psicoterapia, não foi psicanálise, mas fica clara a orientação psicanalítica daqueles encontros entre a psicóloga e o adolescente. O garoto foi afetado. Não foram encontros protocolares. Um vínculo transferencial aconteceu. Ao saber que aquele seria o último encontro, Jamie fica apavorado.

No quarto e último episódio, 13 meses depois do crime, ficamos sabendo que o julgamento irá acontecer em um mês. É dia do aniversário do pai de Jamie - que completa 50 anos. Ele recebe um cartão do filho desejando-lhe parabéns. Em seguida, a filha mais velha dá a notícia de que o carro da família havia sido pichado com a palavra "tarado". A jovem diz que água e sabão não vão apagar a pichação, como que dizendo tratar-se de algo mais profundo.

Juntos, então, os três vão a uma loja comprar algum produto para limpar o carro. No trajeto, recortes da história de como os pais se conheceram e da trilha sonora que marcou a época em que eles (os pais) eram os adolescentes. A mãe lembra de "Take on me", da banda norueguesa A-ha, que fala do amor e suas incertezas. Ao chegarem no local, o pai diz: "Filha, você tem que se orgulhar porque é fruto de muito amor". Na volta para casa, acontece uma ligação de Jamie para o pai dando-lhe parabéns pelo aniversário e comunicando ao genitor que irá mudar seu depoimento. Vai declarar-se culpado. Os três chegam em casa e a dor comparece de maneira avassaladora. Pai e mãe choram e riem ao lembrar de momentos com Jamie, quando ele era pequeno, das brincadeiras, do filho lambuzando-se ao tomar sorvete. Os pais perguntam um ao outro se foram bons pais, se são bons pais. "Sim, fomos bons pais"; "Somos bons pais"; "Achávamos que ele estava bem e protegido aqui do nosso lado no quarto dele". A cena final, tem a voz da norueguesa Aurora Aksnes e sua "Through The Eyes Of a Child" e a dor dilacerante do pai no quarto do filho, em tons de azul com papel de parede reproduzindo galáxias, planetas, outros mundos, mas ali, naquele momento, o mundo daquele pai era a dor. A canção falando do coração quente e suave de uma mãe, da segurança e do amor incondicional: "Please, dont leave me here" (Por favor, não me deixe aqui, em português). Nesse momento, o pai cobre o ursinho de pelúcia (o filho) que ficava na cama de Jamie.

O que essa série explicita é algo do que já estamos assistindo há muito tempo. Jovens capturados e tragados pelas redes sociais, por discursos e imagens esvaziados de conteúdo, por um macrocosmo do qual não conseguem processar. Tudo isso somado a pais e mães perdidos. A questão mais relevante não é saber quem é o culpado, visto que já no primeiro episódio isso fica claro. "Adolescência" nos convoca à seguinte questão: o que cada um de nós tem a ver com isso?

 

Sobre Sabrina Matos

Sabrina Matos é psicóloga e psicanalista. Tem especialização em Psicologia Clínica e Saúde Mental pelo Centro de Estudos Vandick Ponte e é mestre em Saúde Pública pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente, é professora da Universidade de Fortaleza (Unifor).

 

Roda de conversa sobre a série "Adolescência"

  • Quando: quarta-feira, 2 de abril, às 11h30min
  • Com a presença das professores Sabrina Matos e Leônia Cavalcante
  • Onde: Núcleo Diálogos - Espaço Cultural Unifor
  • Mais informações: @laepcusunifor
  • Gratuito
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