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Juliana Diniz: Meu bisturi, as palavras
Vida & Arte

Juliana Diniz: Meu bisturi, as palavras

Professora Juliana Diniz aborda a importância das palavras
Edição Impressa
Tipo Opinião Por
Juliana Diniz, professora da UFC (Foto: Arquivo)
Foto: Arquivo Juliana Diniz, professora da UFC

Gosto de pensar que as palavras que trago no bolso são como pequenos instrumentos que tenho à mão para construir uma morada no mundo. São pincéis ou bisturis, a depender do objetivo. Posso, catando um substantivo aqui e um adjetivo acolá, tracejar uma cena, ajustar o timbre de voz de um personagem, deixá-lo careca e sisudo ou muito bem-humorado, fazê-lo sentar pacientemente enquanto toma um chá ou correr à exaustão, fugindo da polícia, dar-lhe um destino de boa e longa vida ou amedrontá-lo com a iminência da morte: meus pinceizinhos fornecem o ritmo, as cores, a temperatura e os humores, mágicos e muito meus, fundam um mundo de que sou a única e verdadeira artífice.

As palavras também são bisturis hábeis e com elas sou capaz de destrinchar conjunturas e sentar os reis no seu trono para avaliar melhor o peso da coroa e dos seus trajes. Na autópsia da política, um discurso pode ser decomposto até que me sobre apenas a intenção nua e crua, o fisiologismo, a cínica advocacia de um interesse pouco republicano, os afetos mais inconfessáveis. Sem as minhas palavras - os meus bisturis - eu seria pouco mais do que uma ouvinte passiva, uma testemunha silenciosa dessa pantomima a que chamam a república. Basta um adjetivo e voilà! O rei, agora nu, vale pouco mais do que uma risada. E que poder magnânimo esse o de fazer rir com uma crônica ou um conto! Matam-se reputações, destroem-se impérios apenas com o bom uso da pena e do humor.

Poderia reconhecer-me muito pobre e indefesa, eu que sou mulher e ainda não posso pretender ter muito, mas as tenho, preciosas, caríssimas, muito saborosamente guardadas à disposição do meu uso. E que arma fundamental para uma mulher é a posse de uma caixa bem fornida com adjetivos e bons verbos. Uma coleção de advérbios com que possa expressar ao mundo a intensidade de uma dor ou precisar a frequência dessas opressõezinhas cotidianas que todo mundo finge que não vê. Sem as palavras, a voz não se articula, o futuro se fecha, a resistência se revela muito efêmera e, por isso, inútil.

Perde-se a cabeça das heroínas para a guilhotina, mas suas palavras ficam, às vezes perdidas, ecoando errantes ano após ano, século após século, frases em busca de um ouvido que faça um bom uso de seu poder e de sua luz. Um dia uma geração as descobrirá no fundo de um baú, no último andar de uma prateleira e soprará o pó que esmaece os gritos e as denúncias para trazê-las de volta à vida. Se eles soubessem o poder que tem um adjetivo, proibiriam às mulheres o domínio da linguagem - nos trancafiariam num silêncio eterno, alheias ao que somos e ao que poderíamos ser.

Palavras libertam ou prendem, por isso é preciso um extremo cuidado, um zelo redobrado com seu uso. Elas constroem ou arruínam. Têm seu peso, sua função - é preciso destreza e arte para manejar o pincel assim como o bisturi. Pois não é verdade que há palavras que rasgam, como oligarquia, autocracia, réu, assédio? E o vocábulo golpe, que parece já ter nascido acompanhado de um ponto de exclamação? Há palavras difíceis, que dão conta dos processos a que aludem, como constituição - uma palavra que se arrasta, que vai se firmando sílaba a sílaba como se erguesse um edifício político. Outras se dão muito musicalmente, como poesia, ou cintilam, como a palavra esperança. Não parece ela uma aparição mimosa de um facho de luz farfalhante, faiscante, sedutora em sua beleza?

Um mundo triste é um mundo sem livros, pobre de palavras, carente de pinceis e de instrumentos com que criar, destrinchar, fundar o que sucede dia após dia até o ponto de que possamos ver e entender. Um mundo de vazio e de silêncio, em que as expressões são sempre iguais e os rostos sem nuances, à falta de adjetivos que exprimam com clareza a alegria ou o tédio. Brinquemos com elas, devassemos os versos, nutramos o nosso tempo com bons romances, escrevamos! Nosso mundo, afinal, pode ser imenso ou diminuto, a depender das cores que encontremos na língua, nossa terra, ruína ou fascínio, nossa derradeira potência de vida.

Julian Diniz, professora da UFC
Julian Diniz, professora da UFC

Sobre Juliana Diniz

Juliana Diniz é doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC). Além de colunista do O POVO, é editora do site bemdito.jor e vice-diretora da Editora UFC. 

Escrita feminina

No sábado, 5, é realizada a roda de conversa "Escrita feminina e o exercício da crônica na literatura cearense: a redescoberta de Margarida Sabóia de Carvalho". Participam da atividade Juliana Diniz e Paula Brandão.

  • Quando: sábado, 5, às 16 horas
  • Onde: Sala 1 do 2º Mezanino - Oeste
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