Gosto de pensar que as palavras que trago no bolso são como pequenos instrumentos que tenho à mão para construir uma morada no mundo. São pincéis ou bisturis, a depender do objetivo. Posso, catando um substantivo aqui e um adjetivo acolá, tracejar uma cena, ajustar o timbre de voz de um personagem, deixá-lo careca e sisudo ou muito bem-humorado, fazê-lo sentar pacientemente enquanto toma um chá ou correr à exaustão, fugindo da polícia, dar-lhe um destino de boa e longa vida ou amedrontá-lo com a iminência da morte: meus pinceizinhos fornecem o ritmo, as cores, a temperatura e os humores, mágicos e muito meus, fundam um mundo de que sou a única e verdadeira artífice.
As palavras também são bisturis hábeis e com elas sou capaz de destrinchar conjunturas e sentar os reis no seu trono para avaliar melhor o peso da coroa e dos seus trajes. Na autópsia da política, um discurso pode ser decomposto até que me sobre apenas a intenção nua e crua, o fisiologismo, a cínica advocacia de um interesse pouco republicano, os afetos mais inconfessáveis. Sem as minhas palavras - os meus bisturis - eu seria pouco mais do que uma ouvinte passiva, uma testemunha silenciosa dessa pantomima a que chamam a república. Basta um adjetivo e voilà! O rei, agora nu, vale pouco mais do que uma risada. E que poder magnânimo esse o de fazer rir com uma crônica ou um conto! Matam-se reputações, destroem-se impérios apenas com o bom uso da pena e do humor.
Poderia reconhecer-me muito pobre e indefesa, eu que sou mulher e ainda não posso pretender ter muito, mas as tenho, preciosas, caríssimas, muito saborosamente guardadas à disposição do meu uso. E que arma fundamental para uma mulher é a posse de uma caixa bem fornida com adjetivos e bons verbos. Uma coleção de advérbios com que possa expressar ao mundo a intensidade de uma dor ou precisar a frequência dessas opressõezinhas cotidianas que todo mundo finge que não vê. Sem as palavras, a voz não se articula, o futuro se fecha, a resistência se revela muito efêmera e, por isso, inútil.
Perde-se a cabeça das heroínas para a guilhotina, mas suas palavras ficam, às vezes perdidas, ecoando errantes ano após ano, século após século, frases em busca de um ouvido que faça um bom uso de seu poder e de sua luz. Um dia uma geração as descobrirá no fundo de um baú, no último andar de uma prateleira e soprará o pó que esmaece os gritos e as denúncias para trazê-las de volta à vida. Se eles soubessem o poder que tem um adjetivo, proibiriam às mulheres o domínio da linguagem - nos trancafiariam num silêncio eterno, alheias ao que somos e ao que poderíamos ser.
Palavras libertam ou prendem, por isso é preciso um extremo cuidado, um zelo redobrado com seu uso. Elas constroem ou arruínam. Têm seu peso, sua função - é preciso destreza e arte para manejar o pincel assim como o bisturi. Pois não é verdade que há palavras que rasgam, como oligarquia, autocracia, réu, assédio? E o vocábulo golpe, que parece já ter nascido acompanhado de um ponto de exclamação? Há palavras difíceis, que dão conta dos processos a que aludem, como constituição - uma palavra que se arrasta, que vai se firmando sílaba a sílaba como se erguesse um edifício político. Outras se dão muito musicalmente, como poesia, ou cintilam, como a palavra esperança. Não parece ela uma aparição mimosa de um facho de luz farfalhante, faiscante, sedutora em sua beleza?
Um mundo triste é um mundo sem livros, pobre de palavras, carente de pinceis e de instrumentos com que criar, destrinchar, fundar o que sucede dia após dia até o ponto de que possamos ver e entender. Um mundo de vazio e de silêncio, em que as expressões são sempre iguais e os rostos sem nuances, à falta de adjetivos que exprimam com clareza a alegria ou o tédio. Brinquemos com elas, devassemos os versos, nutramos o nosso tempo com bons romances, escrevamos! Nosso mundo, afinal, pode ser imenso ou diminuto, a depender das cores que encontremos na língua, nossa terra, ruína ou fascínio, nossa derradeira potência de vida.
Sobre Juliana Diniz
Juliana Diniz é doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC). Além de colunista do O POVO, é editora do site bemdito.jor e vice-diretora da Editora UFC.
Escrita feminina
No sábado, 5, é realizada a roda de conversa "Escrita feminina e o exercício da crônica na literatura cearense: a redescoberta de Margarida Sabóia de Carvalho". Participam da atividade Juliana Diniz e Paula Brandão.