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De Banabuiú a Sobral: escritoras do interior participam da Bienal do Livro
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De Banabuiú a Sobral: escritoras do interior participam da Bienal do Livro

Com temática que resgata a resistência feminina, Bienal do Livro do Ceará abre espaços para as novas vozes que descentralizam a literatura
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Aline Nobre, escritora (Foto: ACERVO PESSOAL)
Foto: ACERVO PESSOAL Aline Nobre, escritora

"Palavra". Substantivo feminino que designa uma unidade linguística, que pode ser escrita ou falada. Apesar de o gênero gramatical ser feminino, para esta matéria, buscaram-se pesquisas que mapeassem o número de autoras cearenses após 2020, mas não foram encontradas.

Contudo, em busca de um preâmbulo, cita-se uma pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, vinculado à Universidade de Brasília (UNB), a qual revelou que 70,6% dos livros publicados pelas três principais editoras brasileiras entre 2005 e 2014 foram escritos por homens.

Onze anos se passaram desde essa pesquisa, e ao chegar ao Centro de Eventos do Ceará entre os dias 4 e 13 de abril, leitores cearenses poderão se deparar com uma Bienal do Livro inteiramente pautada por mulheres.

Da curadoria inteiramente feminina aos horários nobres da programação principal, mediados por mulheres, a Bienal de 2025 resgata as narrativas de Mima Renard (1692), Ursulina de Jesus (1754) e Maria da Conceição (1798), mulheres cujas vidas foram 'incriminadas' pela Inquisição e pelo preconceito.

Tecendo como pano de fundo o tema da Bienal 2025, "Das fogueiras ao fogo das palavras: mulheres, resistência e literatura", o Vida & Arte conversa com representantes da nova geração de autoras cearenses, que estreiam no evento literário trazendo vivências descentralizadas e referências que renovam o fôlego da literatura.

A autora Thay Gadelha
A autora Thay Gadelha

Thay Gadelha

"A disputa do Slam é um motivo para que as margens se encontrem no centro", afirma Thay Gadelha. A jovem, de 24 anos, estreia na Bienal como representante do Slam da Quentura.

Nascida e criada no bairro Dom José, na periferia de Sobral, Thay se encantou pela palavra através do projeto "Amigos da Leitura", enquanto ainda era aluna da rede pública de ensino.

Engajada, escrevia diariamente sobre seus sentimentos, mas, enquanto adolescente, não sentia que sua escrita confessional se encaixava nos moldes dos gêneros literários tradicionalmente lecionados nas escolas.

O entendimento de que seus escritos também eram arte mudou em 2018, quando, por meio de uma feira colaborativa, Thay conheceu o trabalho desenvolvido por Cacheada Santtos com o coletivo Slam das Cumadi.

Após o encontro, além de um ponto de entrada para o universo da palavra falada, Thay também encontrou no slam um espaço de acolhimento e libertação artística.

"Foi no palco do Slam das Cumadi que eu recitei pela primeira vez as minhas poesias. Além da rede de apoio feminino que existe entre nós, pude obter reconhecimento enquanto escritora, enquanto poeta, porque as minhas poesias começaram a ser validadas e vistas como literatura ali", explica.

Hoje, após 7 anos no movimento e diversas disputas, Thay consolidou, ao lado de outras autoras, o trabalho desenvolvido no slam por meio dos volumes 1 e 2 da obra "Às margens: poesia que corta a cidade".

Refletindo sobre a passagem do tempo, a poeta também analisa a crescente abertura de Sobral para linguagens literárias que fogem dos moldes tradicionais.

"Sinto que hoje o Slam está adentrando espaços que antes não eram compreendidos, como em escolas e universidades. Temos professores que nos procuram para oficinas, apresentações coletivas, e isso só demonstra essa abertura maior", destaca.

Com ações formativas que variam desde a mediação de bate-papos até a atuação como Slammaster, pessoa responsável por organizar e conduzir as batalhas de slam, Thay ressalta o marco inaugurado com a chegada do slam na Bienal.

"O slam chegou no Ceará por meio dos interiores, como Sobral. Então, estarmos ganhando espaço na Bienal é uma concretude de que nosso trabalho está sendo bem feito e ecoando. A escrita, para mim, não deixa de ser um compromisso com a memória. Então, é sobre devolver o espaço para a literatura marginal e feminista que lhe é devido", defende a poeta, que também é graduanda em Direito.

Acompanhe Thay Gadelha na Bienal

  • Roda de Conversa: A Trajetória do Slam no Ceará
  • Quando: quinta-feira, 10, às 14 horas
  • Mais informações: @thaygadelha4

Veja indicações de leitura de Thay Gadelha:

  • "Às margens", de Rayssa Kelly
  • "Perto do Coração Selvagem", de Clarice Lispector
  • "Tudo nela brilha e queima", de Ryane Leão
A autora Mylena Queiroz à beira do rio Jaguaribe, em Aracati-CE
A autora Mylena Queiroz à beira do rio Jaguaribe, em Aracati-CE

Mylena Queiroz

Natural de Santa Cruz do Capibaribe, no Agreste pernambucano, Mylena sempre esteve acostumada a pesquisar, esmiuçar e lecionar sobre a palavra.

Graduada em Letras Vernáculas e suas Literaturas e doutora em Literatura e Interculturalidade, ambas pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Mylena chegou com mala e livros à Terra da Luz em 2024, a fim de lecionar na Universidade Estadual do Ceará (Uece), em Aracati.

Inspirada pelo Vale Jaguaribano, coincidentemente, o processo de escrita de seu primeiro livro, “Sangue de Cabra”, também se deu com essa mudança de cidade.

O vídeo de uma menina assediada que tem seu vídeo viralizado, uma senhora que sonha com o fim sanguinário de um latifundiário e uma tragédia na cisterna que une duas irmãs. Essas são algumas das narrativas apresentadas no livro de estreia de Mylena, que, em nove contos, resgata violências, recomeços e a resistência feminina em meio à brutalidade do cotidiano.

A inspiração surgiu após uma oficina de escrita, que deu origem a Menarca, primeiro conto publicado por Mylena. Nele, a autora relata a vivência de Ana, uma menina órfã que decide confrontar o tio abusador no mesmo dia em que tem sua primeira menstruação, a menarca.

Publicada em 2024, por meio do projeto Amora Assinaturas, o conto surgiu como um ponto de partida para inaugurar um novo formato de escrita que antes se restringia ao campo acadêmico.

"Essa escrita veio desse acúmulo de relatos de amigas e mulheres, além de sermos bombardeados com notícias e casos de violência contra a mulher e de feminicídio. No próprio meio acadêmico também me deparei com esses cenários de micromachismos. Então essas histórias, apesar de serem ficção, têm muito do real", pontua.

Ainda no rol de estímulos, em 2024, Mylena deu início a um projeto de autoria feminina e horror na Uece, a fim de fomentar entre as alunas da graduação de Letras a autoria de narrativas ficcionais que proporcionem essa mesma libertação que a escrita literária lhe proporcionou.

"Me sinto muito honrada e, ao mesmo tempo, sinto que estou possibilitando algo que eu gostaria de ter tido durante a minha graduação. Vejo alunas muito interessadas e engajadas, e de certa forma sei que isso é fruto desse novo campus da Uece, que surge no projeto de interiorização. Eu tive que sair da minha cidade porque não havia um campus universitário por lá. Então é muito gratificante estar trabalhando com essas questões no interior e sendo do interior", conta a docente de 34 anos.

Acompanhe Mylena Queiroz na Bienal

  • Bate-papo: Territórios especulativos - Mulheres escrevem a ficção especulativa
  • Quando: sexta-feira, 11, às 9 horas
  • Mais informações: @mylenaq.iroz

Veja indicações de leitura de Mylena Queiroz:

  • "Eu, Tituba: bruxa negra de Salem", de Maryse Condé
  • "Caminhando com os mortos", de Micheliny Verunschk
  • "Voladoras", de Mónica Ojeda
Aline Nobre
Aline Nobre

Aline Nobre

Nascida em Banabuiú, município do Ceará localizado a 210 km ao sul de Fortaleza, a relação de Aline com a palavra sempre foi de encantamento pelas rimas. Criada em uma casa com poucos livros, mas alguns cordéis, ainda jovem, ela gostava da brincadeira lúdica e sonora da homofonia, mas sem imaginar que sua vida se entrelaçaria com a literatura.

A perspectiva mudou durante o 2º ano do ensino médio, quando, em uma atividade literária, leu um conto seu pela primeira vez. Ao final da aula, após a recepção positiva dos colegas e a insistência de um professor, Aline começou a escrever e a armazenar seus textos em um blog, mesmo que, à época, “ninguém lesse”.

Quatorze anos se passaram, e da garota do blog, hoje, Aline Nobre chega à Bienal do Ceará com dois livros publicados, um em fase de produção e tantos outros cordéis, fanzines e contos produzidos.

Publicado em 2021, "Mulher Contestada" surgiu a partir de uma fanzine e foi lançado após uma chamada da editora paulista Brutal para narrativas LGBTQA+. Em uma mistura de linguagens que une poemas a colagens, a obra explora a condição de ser uma mulher que ama outras mulheres, e as diversas contestações que surgem em meio ao processo de libertação.

No ano seguinte, revisitando também os processos pelos quais passou durante sua infância, Aline redigiu "Não existem borboletas na Antártica", um livro escrito em verso, com ilustrações da própria autora e um cordel no meio da narrativa. A história explora as metamorfoses que acontecem durante o amadurecimento, por meio de Maria Rita, uma menina que possui um grande fascínio por borboletas. Como pano de fundo, a obra aborda as mudanças climáticas, pauta que dialoga diretamente com a atuação de Aline enquanto engenheira ambiental.

A inspiração para esse formato livre de expressão surgiu após o contato da poeta com o sertão punk, movimento artístico que mistura gêneros para reimaginar uma visão futurista do Nordeste.

“O sertão punk é sobre a transgressão e, por isso, fiz um conto escrito ao inverso em sua maior parte. Cada ponto, cada parágrafo, cada linha foi pensada, pois o sertão punk não apenas quebra regras, mas também instaura novas regras dentro da literatura que você produz”, elucida.

Nas fases finais da produção de sua terceira obra, “Mapa do miolo do vulcão”, com planos para eventos de lançamentos por diversos municípios do Ceará em junho, Aline reforça o impacto de sua visão de mundo estar repercutindo na Bienal.

“Acredito que estar na Bienal é levar meu trabalho para mais longe, furar a bolha e ter um evento que intermedie a minha literatura para pessoas de uma realidade tão diferente. No fim, também referenda a relevância de estar na minha cidade, organizando e impulsionando eventos culturais locais nesses lugares que precisam”, destaca.


Acompanhe Aline Nobre na Bienal

  • Bate-papo: Encontros entre o sertãopunk e o afrofuturismo
  • Quando: quinta, 10, às 11 horas
  • Mais informações: @alinesnobre

Veja indicações de leitura de Aline Nobre 

  • História de Pandora em Nova Simbologia", de Julie Oliveira
  • "Eu conheço Uzomi", de Kinaya Black
  • "Poemas obsessivos", de Mika Andrade

XV Bienal Internacional do Livro do Ceará

  • Quando: até 13 de abril, das 10 horas às 22 horas
  • Onde: Centro de Eventos do Ceará (avenida Washington Soares, 999 - Edson Queiroz)
  • Gratuito
  • Mais informações: no Instagram @bienaldolivroce

 

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