"Minha terra tem mais rosas... e quase que mais amores" - escrito por Oswald de Andrade nos anos 1920, o poema 'Canto de regresso à pátria' é recitado ainda nos primeiros segundos dessa história por uma voz familiar ao telespectador brasileiro. Apesar de ser um filme com produção completamente estadunidense, 'Maré Alta' também é "super brasileiro", como nos conta Marco Pigossi, de Los Angeles, em entrevista ao O POVO.
Na trama escrita por Marco Calvani, dramaturgo italiano casado com Pigossi desde 2023, Lourenço é um imigrante brasileiro em Provincetown, cidade em Massachusetts referenciada como "meca queer" pela grande parcela de população LGBT. Com um efêmero visto de turista, ele espera encontrar um destino improvável enquanto se divide entre a solidão e a vontade de nunca mais voltar para casa.
Morando há cinco anos nos EUA, o ator conta sobre o momento da sua carreira "em relacionamento sério com o cinema independente" após mais de dez anos de trabalho na TV Globo e de experiências em streamings. No contexto de "Maré Alta", reflete sobre o diálogo do filme com discussões atuais, como a violenta política imigratória dos EUA no governo Trump e a expansão do extremismo religioso no Brasil.
O POVO - Em 'Maré Alta' você interpreta um personagem mais sóbrio e com certa melancolia. Já tendo feito personagens de comédia, de drama e até de fábulas, o que você diria ter sido um desafio exclusivo na construção desse novo filme?
Marco Pigossi - Eu acho que o desafio foi mais na questão da técnica do ator. Diferente do que a gente está acostumado como linguagem de telenovela. A gente falava no set que o Lourenço era uma implosão, ao invés da explosão. Ele está tentando entender sua personalidade, quem ele é, como existir em uma sociedade, de uma língua que não é dele, de um país que não é dele. Em uma sociedade que é muito mais contida emocionalmente nesse lugar. Então, ele trabalha nesse lugar de timidez, essa introspecção, essa melancolia, tudo isso foi um trabalho de trazer pra dentro, de deixar mais no olhar, aquela lágrima que chega, mas que nunca vai cair. É diferente do que a gente está acostumado com atuação no Brasil. Pra mim, o maior desafio foi trazer uma atuação que fosse mais interiorizada. É um filme que tem muitos silêncios e os silêncios falam muito mais do que quando o Lourenço está dando um texto.
OP - Esse deve ser o seu maior trabalho em inglês, apesar de não ser o primeiro. A língua é uma barreira para a atuação?
Marco - Foi o primeiro filme que rodei aqui nos EUA e é o meu primeiro protagonista em um filme americano. Apesar de eu falar também que é um filme super brasileiro, mesmo sendo uma produção 100% americana. Existe sempre um desafio em atuar em outra língua, como já disse a Fernanda Torres, o Walter Salles e o Wagner Moura, por exemplo. Quando a gente está dentro da nossa língua, todas as palavras carregam uma emoção. Mas o que acontece em 'Maré Alta', diferente dos outros projetos que tive aqui, é que o Lourenço também não tinha essa memória afetiva da língua. Ele era um brasileiro que estava tentando se descobrir e se expressar em uma língua que não era dele.
OP - Sinto que existem dois contextos importantes que reforçam a perspectiva de assistir a esse filme hoje. O primeiro deles é a política dos EUA, neste segundo mandato de Donald Trump, em relação aos imigrantes do Brasil e do mundo. Lourenço é esse imigrante desamparado. Como você percebe que esse debate encontra o filme?
Marco - A questão da imigração sempre foi muito presente nos EUA, sempre teve uma política muito violenta. A gente não estava no Governo Trump durante as filmagens, mas a gente tinha vindo do primeiro mandato dele. O filme lançar agora com o Trump voltando com uma política ainda mais violenta torna tudo mais atual. É uma discussão que a gente vê todos os dias. O filme fala muito sobre esse "sonho americano" e como ele é vendido para gente, mas é uma lenda, uma fábula criada por Hollywood. É um sonho quebrado. Lourenço vem em busca de se libertar de um lugar de repressão religiosa, ele está fugindo de um lugar que não soube apreciá-lo. Quando se fala em imigrante diz que eles "vêm roubar emprego", mas existem um milhão de outros fatores que fazem as pessoas procurarem outros países.
OP - O outro contexto é a origem do seu personagem, que vem de uma família evangélica onde "tudo é sobre Jesus". O Brasil hoje é um país cada vez mais evangélico e com uma grande parcela que usa disso para respaldar posições homofóbicas, como acontece no filme. Você sente que isso vai ser percebido pelo público brasileiro?
Marco - Algumas religiões trabalham muito com a opressão, com a questão do pecado, do errado, da condenação, e isso coloca dentro do personagem uma situação que é um "beco sem saída". Você mente para sobreviver, esconde sua homossexualidade, mas mentir também é um pecado. Muitas pessoas jovens se veem nesse círculo. É difícil quebrar esse pensamento. Para tentar quebrar isso, o Lourenço vai para um lugar mais queer, mais gay, uma cidade vivida por gays. Mas ele acaba encontrando outras dificuldades sociais. Acho que é um filme otimista porque fala sobre pertencimento, então quando a gente cresce num ambiente religioso que te oprime, a gente sente que não pertence. Você busca uma pessoa, um país, uma cidade. Mas a grande beleza é pertencer a si. A partir daí é que você consegue pertencer a outras coisas.
OP - Você disse que esse filme também é brasileiro por conta do Lourenço. As referências brasileiras que surgem no filme também têm criação sua?
Marco - Toda essa brasilidade eu posso levar crédito. Todas as questões brasileiras foram trazidas por mim. Eu queria que o brasileiro se identificasse imediatamente. E todas as questões do que é ser um latino nos EUA, as pequenas violências, coisas que vivi e experimentei.
OP - A experiência de trabalhar com cinema independente, sem dúvidas, é muito diferente de trabalhar para plataformas de streaming e canais de televisão. Como você avalia essa experiência?
Marco - Eu estou em um relacionamento sério com o cinema independente. Eu trabalhei muitos anos na Globo e depois fui para a Netflix. O cinema independente te dá uma liberdade melhor para você explorar tópicos que sejam mais interessantes para mim como artista e ator. Estou produzido um documentário sobre refugiados LGBTQIAP no Brasil. No cinema independente há uma liberdade de temas sem precisar estar preso a algoritmos ou venda de ingressos. Me traz uma liberdade de poder me posicionar e trazer pensamentos.
Maré Alta