Quando a personagem da Naomi Watts chacoalha na cadeira do teatro, movida pela estranha energia de um palco misterioso, algumas risadas ecoaram da plateia. Em uma cena anterior, porém, a aparição súbita de um "fantasma" também arrancou pequenos gritos e suspiros. No último sábado, 12, o Cinema do Dragão esgotou os ingressos da Sala 2 para receber a pré-estreia de "Cidade dos Sonhos", clássico do renomado cineasta americano David Lynch, que morreu em janeiro aos 78 anos.
Para além dos fãs do diretor e do próprio filme, a sessão reuniu também pessoas que nunca tinham assistido produções do cineasta. Entre estudantes, artistas e cinéfilos, o que unia todos naquela sala era a curiosidade sobre o que o tempo teria feito a essa obra. Quase 25 anos depois, ela teria se tornado menos intrigante? A caricatura desse sonho febril ainda é capaz de capturar uma plateia hoje tão acostumada com a certeza?
Na trama, Betty se muda para Los Angeles na esperança de conseguir trilhar a carreira de atriz - além de acreditar no próprio mérito técnico, ela sabe também que a indústria é cercada de obstáculos e poderes de outras naturezas. O que será preciso para fazer parte desse seleto círculo?
Enquanto tenta decifrar essa resposta, ela se vê envolvida com uma mulher em fuga após quase ser assassinada, e que é subitamente acometida por uma amnésia. Saber quem ela é, de repente, vira o desejo teatral de ser outro - "Como nos filmes", Betty sugere animada enquanto pega o telefone.
Quando finalmente chegam na resposta, porém, o filme se vira num dos avessos mais elegantes do cinema americano.
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Assistir a essa restauração poucos meses depois da partida do seu autor acaba causando uma surpresa muito estranha e comovente porque Hollywood, afinal, continua tão irônica e cruel quanto nessa paródia de uma corporação secreta que trata a composição dos filmes como braços de uma máfia corrupta.
A estranheza de Lynch conseguia conviver com uma indústria que a temia, contraditoriamente, porque seus filmes eram convites às dúvidas e perguntas, equação muito distante de um sucesso dos shoppings. "Cidade dos Sonhos" encontrou grande popularidade ao decorrer dos anos, principalmente, por ser uma resposta a essa ironia, mas carregada de tensão, humor e paixão pelo cinema.
Entre a realidade e sua abstração, Lynch desconfigura a expectativa de que o sonho seja apenas o susto. Na sua tela e naquelas colinas de Los Angeles, é só o sonho que existe. O delírio radiante de uma atriz é muito mais tangível do que quer que aconteça do lado de fora, no "mundo real". É como se o autor também tivesse escutado a canção dos Trapalhões que conheci na voz de Los Hermanos: "Hollywood fica ali bem perto... Só não vê quem tem um olho aberto". Para ser Hollywood, feche os olhos.
Ao fim dos seus quase 150 minutos, a sessão no Cinema do Dragão terminou sob aplausos tímidos de uma audiência estarrecida. Apesar do nó que o filme deve ter dado na cabeça de quem estava ali para vê-lo pela primeira vez, como um casal ao meu lado incrédulo com o longo desfecho, pelo menos era consenso de que estávamos todos diante de algo muito raro.
"Cidade dos Sonhos"
Quando e onde: Ingresso.com