*Texto da professora Liziane Menezes
Há escritores cuja pena ergue impérios simbólicos. Outros, porém, são capazes de, com a mesma pena, trair os sonhos que um dia ajudaram a narrar. Mario Vargas Llosa, escritor peruano e Prêmio Nobel da Literatura em 2010, foi, sem dúvida, um dos grandes autores da literatura do século XX.
Obras como "Conversa na Catedral", de 1969, com sua pergunta devastadora — "em que ponto o Peru se fodeu?" —, escavaram as camadas mais profundas de uma América Latina ferida por ditaduras, desigualdades e silenciamentos. Em "Travessuras da Menina Má", publicado em 2006, o escritor construiu uma protagonista inquieta, errante, que cruzava fronteiras, países e amores em busca de liberdade.
Vargas Llosa parecia, à época, um aliado do espírito crítico, um autor atento aos mecanismos sutis da dominação, aos jogos do poder, às contradições do subdesenvolvimento.
Mas, com o tempo, seu nome passou a ser menos associado à denúncia dos abusos e mais à celebração de um liberalismo dogmático, muitas vezes indiferente — ou mesmo hostil — às feridas do continente que tanto retratou.
A guinada ideológica de Vargas Llosa não foi apenas uma escolha política: foi uma ruptura com o imaginário de libertação que alimentou gerações. O homem que revelou os subterrâneos do autoritarismo, que radiografou as elites latino-americanas com fina ironia, passou a frequentar os salões do poder e a aplaudir presidentes que flertavam com o fascismo e atacavam direitos fundamentais. Em sua fase final, o escritor parecia mais empenhado em agradar aos "think tanks" do Ocidente do que em dialogar com os dramas do Sul global.
Aliás, o desvio de Vargas Llosa com a América Latina pareceu acompanhar seu desencanto com a sua própria concepção de cultura. No seu copilado de textos críticos que fazem parte de "A Civilização do Espetáculo", tendo como primeira publicação dessa obra o ano de 2013, Vargas Llosa já não soava conciliador, tampouco esperançoso. Ali, ele protestava contra o declínio daquilo que chamou de "alta cultura" — um saber exigente, minoritário, construído por códigos complexos e por vezes herméticos — e denunciava a transformação da cultura em entretenimento vazio, moldado pela lógica da massificação midiática.
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Por trás dessa crítica havia uma elitista nostalgia: a defesa de um mundo onde a cultura seria privilégio de poucos, distante dos ruídos do povo e das tensões do presente. A que cultura ele se referia, afinal? Àquela que desafia o público ou àquela que o exclui?
É triste saber que muitos autores não foram ou não se preocuparam em ser coerentes com suas obras. O lema árduo e muitas vezes nebuloso de tentar separar criador de criatura. Mas é inevitável que, no caso de Vargas Llosa, essa contradição salte aos olhos. O autor que deu voz às sombras e às fissuras sociais preferiu, em muitos momentos, exaltar o brilho falso de democracias de fachada. O crítico da corrupção virou defensor de oligarquias. O observador dos vícios da elite transformou-se em seu entusiasta. Foi uma trajetória que decepcionou muitos de seus leitores mais atentos.
A opção de Vargas Llosa por um liberalismo inflexível — que desprezava a justiça social em nome de uma liberdade abstrata — o distanciou do povo que um dia compôs o pano de fundo de seus romances. Ao alinhar-se a líderes de extrema-direita e elogiar modelos econômicos que aprofundavam a exclusão, Vargas Llosa se afastou não apenas da esquerda latino-americana, mas da própria realidade de seus países. Seu olhar tornou-se eurocêntrico demais, seus diagnósticos, consequentemente, importados, sua linguagem cada vez mais distante da dor coletiva que, no passado, soube traduzir com tanta sensibilidade.
Essa transformação não apaga sua genialidade literária. Vargas Llosa foi um mestre da estrutura narrativa, um romancista de fôlego à la Flaubert, um estilista apurado. Sua prosa combinava sofisticação formal e pulsação histórica. Em livros como "A Guerra do Fim do Mundo", inspirado no episódio de Canudos, demonstrou que compreendia as tensões entre fanatismo, miséria e utopia. Foi um intelectual de peso, um nome incontornável do chamado "boom latino-americano", ao lado de Gabriel García Márquez, Julio Cortázar e Carlos Fuentes. No entanto, ao contrário destes últimos, Vargas Llosa escolheu romper com os sonhos de integração, rebeldia e solidariedade continental.
Ele dizia querer salvar a América Latina de suas ilusões revolucionárias, como se nossos povos estivessem condenados ao fracasso por ousarem imaginar algo fora da cartilha neoliberal. Repetia a velha dicotomia entre civilização e barbárie, popularizada por Domingo Faustino Sarmiento — o pensador argentino do século XIX que via no progresso europeu a salvação para os males do continente. Vargas Llosa, como Sarmiento, confundiu complexidade com atraso, resistência com desordem. Só que no século XXI, esse discurso não redime: compromete.
Llosa morreu aplaudido pelas elites que nunca compreenderam a profundidade de sua obra e contestado por leitores que viram na sua virada um gesto de rendição. A literatura permanece. Seus romances seguirão sendo lidos e estudados. Mas o homem, o intelectual público, será lembrado como alguém que, diante da encruzilhada entre fidelidade à história e conveniência ideológica, escolheu o lado errado. E talvez essa tenha sido a maior tragédia de sua narrativa.
Sobre a autora
Liziane Menezes é professora, mestre em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e tem estudos voltados para a literatura latino-americana.
Conheça o trabalho da pesquisadora: no Instagram @profalizimenezes