Há pouco mais de um ano, quando "Motel Destino" foi anunciado na seleção principal do 77º Festival de Cannes, parecia certa a oportunidade de O POVO estar no evento. Afinal, seria o primeiro filme cearense a ser exibido nesse que é considerado um dos maiores festivais de cinema do mundo, ao lado de Veneza e Berlim. Era preciso estar lá e acompanhar quais marcas o Ceará deixaria no imaginário mundial do cinema.
Quando tive a oportunidade de fazer apenas uma pergunta ao cineasta cearense Karim Aïnouz, na formalidade de uma coletiva de imprensa tão diferente da intimidade que ele já tinha com o jornal, pude questioná-lo sobre a invenção desse mesmo "imaginário". Sessenta anos depois que Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha enraizaram em Cannes a imagem nordestina com os sertões profundos de "Vidas Secas" e "Deus e o Diabo na Terra do Sol", Karim apresentava ao mundo um outro Nordeste - do litoral, do mar e da paixão.
No imponente Grand Théâtre Lumière, a sala mais importante do evento, o ator Iago Xavier dançou forró até mesmo com o diretor geral do festival, Thierry Frémaux, trajado num smoking discreto enquanto tentava reagir a uma empolgação que ele não estava acostumado. Transmitida para o mundo inteiro, a imagem causava uma expressão cearense tão genuína quanto o próprio filme.
Ao longo de dez dias, a cobertura buscou dar conta do que tornava aquele um evento tão relevante para além dos seus nichos de cinéfilos, jornalistas culturais e profissionais da própria indústria: Cannes é o ponto de partida. Filmes como "Megalopolis", "A Substância", "Flow", nosso rival "Emilia Perez" e até mesmo "Anora", grande vencedor do Oscar 2025, se apresentaram pela primeira vez lá, ainda sem fazerem ideia de qual rumo tomariam adiante.
Em 2025, O POVO estará novamente - dessa vez, para uma cobertura integral, entre os dias 13 e 24 de maio. Mesmo que a graça do evento seja justamente a imprevisibilidade de quais filmes vão marcar a edição, é interessante criar suposições, também como forma de situar o espectador: o que nos espera?
Em meio a campanha explosiva de "Ainda Estou Aqui" no Oscar e após a vitória de "O Último Azul" no 75º Festival de Berlim, o evento anunciou o Brasil como o "País de Honra" da Marché Du Film, seção do festival voltada para o mercado. A notícia vibrante parecia um presságio do que já era uma especulação: a estreia de "O Agente Secreto", do pernambucano Kleber Mendonça Filho, na competição principal.
O Brasil ainda aparece com o curta-metragem "Samba Infinito", de Leonardo Martinelli, na Quinzena dos Cineastas, e com curtas feitos no Ceará sob tutela de Karim Aïnouz na abertura da Semana da Crítica. Na seleção oficial, porém, o mundo ficou pequeno: dos 20 filmes, apenas três não são da Europa ou EUA. Mais da metade tem coprodução francesa. Fora dessa curva hegemônica, além do brasileiro, temos "Um Simples Acidente" do aclamado diretor iraniano Jafar Panahi, e "Renoir", da cineasta japonesa Chie Hayakawa.
Nessa energia, a forte presença dos EUA parece reforçar o laço da indústria americana com o mercado europeu. Na mesma semana, o festival anunciou a Palma de Ouro Honorária a Robert De Niro e a estreia mundial de "Missão Impossível 8", com Tom Cruise. "Highest 2 Lowest", de Spike Lee, será exibido fora de competição.
Apesar do cenário limitante, o grande valor de acompanhar o festival desde seus primeiros dias é poder olhar o futuro e perceber discussões que poderão tomar conta desta nossa realidade, aparentemente tão alheia. Afinal, quando a ferocidade de Demi Moore explodiu por lá ano passado, parecia certa a sua forte narrativa de retorno ao estrelato.
Anunciado nesta segunda-feira, 21, o cartaz oficial do 78º Festival de Cannes celebra aproximação de "corpos, corações e almas" no simbolismo de um abraço: Anouk Aimée e Jean-Louis Trintignant em "Um Homem, Uma Mulher" (1966), de Claude Lelouch. De que forma esse gesto está, de fato, incorporado à forma como o evento defende sua percepção do mundo? A partir do dia 13 de maio, vamos descobrir juntos.
O POVO em Cannes
A cobertura do Festival de Cannes pode ser conferida nas plataformas do Vida&Arte. Além dos textos publicados no caderno, haverá conteúdo no Portal O POVO e cobertura no Instagram. O jornalista e crítico de cinema Arthur Gadelha - que assina a análise desta página - é o responsável pela cobertura e vai viajar até Cannes em maio. É o segundo ano consecutivo de cobertura de Arthur no festival. Mas a relação do O POVO com o evento não é de agora. Em edições anteriores, colaboradores que estiveram credenciados enviaram materiais de repercussão para as páginas do Jornal.