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A legitimidade do luto do fã quando um artista morre
Vida & Arte

A legitimidade do luto do fã quando um artista morre

O luto é para quem fica. É o sentimento de amor e admiração que se tinha enquanto vivo e que permanece após a perda. Quando pensamos em fãs e artistas, o luto existe - sim! - e segue a mesma perspectiva
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Foto: RAISA/CHRISTINA/ESPECIAL PARA O POVO "O que expressamos com palavras são as sombras", de Raisa Cristina

"Nós não estamos com raiva de você, querido. Você é a melhor coisa que já perdemos", é o que diz em tradução livre a música "You're Gonna Go Far", do cantor Noah Cahan. O trecho é utilizado por fãs que prestam homenagens aos seus falecidos ídolos nas redes sociais. Mas, existe mesmo um luto de fã? O sentimento profundo pode ser sentido mesmo quando não se conhece alguém pessoalmente?

"O luto é uma resposta normal e esperada à perda de algo muito querido", define a doutora em psicologia Sarah Carneiro. A morte é a única certeza que se tem quando nasce, não se sabe como ou quando, mas todos sabem que irão morrer. E, apesar da convicção, é algo que não se pensa no cotidiano.

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Ser fã é admirar alguém pelo trabalho ou personalidade. Mas, para existir um fã, é necessária a existência de algum tipo de identificação. Quem gosta muito e acompanha uma produção passa a projetar seus desejos a partir dos ídolos e essas pessoas - que costumam ser colocadas em "pedestais" - só permitem que o público veja uma certa parte de suas vidas.

O ser humano tem a necessidade de ser representado e se sentir pertencente, isso é recorrente na relação de fã e ídolo. Aquilo que essa pessoa admirada representa é algo que seus fãs desejam ou enxergam em si, como explica a psicóloga e artista visual Fernanda Cruz.

Fernanda relata que o questionamento "por que eu estou sofrendo por alguém que eu não conheço, mas ao mesmo tempo é tão próximo?" é recorrente. Vivenciar o luto é conflitante, entender que a pessoa amada não vai voltar é difícil. E, quando falamos de pessoas que estão inalcançáveis, como acontece na relação fã e ídolo, pode ser algo ainda mais complexo.

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O jornalista e editor de conteúdo musical Nelson Augusto conta ter vivenciado isso com a morte do cantor britânico John Lennon. O ex-integrante da banda Beatles foi assassinado, em dezembro de 1980, por disparos de arma de fogo quando retornava para casa: "Foi muito doloroso, ainda mais por saber que um ídolo partiu de um modo tão violento".

A psicóloga e professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Layza Castelo Branco Mendes, diz que existe o processo saudável do luto. "Quando o falecimento acontece na velhice, é provável que o processo de lidar com essa perda seja menos problemático do que em casos que fogem dessa realidade", diz, refletindo que em casos de acidentes, por exemplo, o processo de despedida será mais conturbado.

É o que se pode observar no caso do John Lennon: um artista de 40 anos, que estava no auge da carreira, teve a vida interrompida de maneira abrupta. Nelson Augusto sente essa perda até hoje, e fica com o pensamento "como seria se ele ainda estivesse vivo?". Mas o jornalista diz que um acalento são as músicas: "A perda foi humana, mas a obra fica e a gente continua cantando".

Caso semelhante é o da cantora Marília Mendonça - que morreu em 2021 após um acidente de avião. A voz que marcou o sertanejo e deu impulso ao "movimento feminejo" também marcou a vida do cantor e estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), Israel Vancouver. "A Marília foi o motivo da minha aproximação com várias pessoas que são até hoje muito minhas amigas".

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Além dela ter sido o ponto de encontro do jovem com outros admiradores, ele também a amava como artista, por suas composições e qualidades vocais. "Nunca fui de escutar sertanejo, mas quando conheci o seu trabalho, fiquei encantado e acho muito importante como ela revolucionou a cena do sertanejo feminino", explica.

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A morte quando chega cedo é ainda mais avassaladora para quem fica. Israel conta que, no dia da morte, 5 de novembro, parecia inacreditável e ele permanece em estado de negação até hoje. Mas espera um dia ser capaz de prestar um tributo à cantora que tanto admira.

 

Raul Seixas ganha exposição no Espaço Bruta Flor
Raul Seixas ganha exposição no Espaço Bruta Flor

A naturalidade da morte

Raul Seixas é outro nome considerado ídolo por muitos brasileiros. Marcelo Renegado, da banda Renegados, atuante na cena alencarina, aponta que a energia de Raul era imensa e seu trabalho como produtor, cantor e compositor era de difícil explicação e fácil conexão.

Muitas vezes usado como referência para seus trabalhos, Marcelo admira todas as produções feitas pelo artista - morto em agosto de 1989 após uma parada cardíaca. Quando o integrante da banda Renegados soube do óbito, foi "impossível" não pensar na última passagem do baiano por Fortaleza. "A energia que ele transmitia no show é realmente algo indescritível", pontua.

O músico conta que ele e seus amigos passaram o restante daquele dia escutando e cantando Raul - "foi um momento que a gente ficou sentindo o luto e a perda". "O luto é sempre uma coisa difícil, seja para as pessoas próximas ou para as pessoas que a gente se identifica e gosta, artisticamente, filosoficamente, ou pelo afeto mesmo da proximidade", conta.

A morte é um processo natural. E, segundo o artista, o ser humano sabe disso, mas é algo para o qual nunca se está de fato preparado. "Sempre tem uma dor na perda, de saber que não terá mais a próxima vez com as pessoas que você ama".

A psicóloga Fernanda Cruz explica que "todo luto é subjetivo e inconsciente", então, por mais que existam fases e reações que podemos esperar, é sempre diferente para cada pessoa. A variação da realidade de cada indivíduo é o que realmente vai ser um fator determinante em qualquer tipo de luto.

 

"É estranho sentir falta de uma pessoa que você nem conheceu"

Se identificar como fã pode também vir da influência da família e dos amigos. Pedro França, que hoje é cover do Freddie Mercury na banda Killer Queen, se tornou um grande fã do grupo ainda criança ao ser presenteado com o disco "Queen - Greatest Hits I, II & III" pela influência de seu pai e irmãos. Desde essa época, ele gostava de imitar os traços do vocalista e isso só se intensificou com a passagem do tempo.

Ele conheceu a banda Killer Queen como um mero fã. Mas, antes disso, decidiu estudar música e, em uma apresentação, se aventurou como cover de Freddie Mercury. Pedro relata que a apresentação o fez começar a ser visto. Então, anos depois, o sonho de se tornar cover do britânico tornou-se realidade, e, em 2023, ele entrou como vocalista oficial da Killer Queen.

"Algo que me comove é quando o público vem relatar que se emocionou por poder ver de alguma forma o Queen, o Freddie Mercury performando". Pedro percebe que o papel do cover é levar os fãs em uma viagem no tempo e poder sentir que o artista continua aqui.

Atualmente, ele e a banda se esforçam para entregar a experiência mais próxima do que foi a realidade dos anos de atividade da banda, como no Rock In Rio de 1985. "Eu ainda estudo muito o Freddie Mercury para entregar um desempenho e detalhes que quem é fã percebe", conta.

"É estranho sentir falta de uma pessoa que você nem conheceu", conta Pedro sobre o seu luto. Mas, para ele, a arte traz isso: "Você sente falta de pessoas que nunca viu". Ele assume ainda sentir a ausência do artista Freddie que ele imagina na sua cabeça, a pessoa que ele imagina que o vocalista do Queen foi.

A psicóloga Fernanda Cruz explica que essa idealização é normal, porque o fã só tem conhecimento dos fatos, das emoções e das reações que o ídolo permite que sejam visto sobre ele. "As pessoas só mostram o que elas querem que os outros vejam, e isso também se aplica aos nossos ídolos", conta.

 

Rei do Pop, Michael Jackson morreu há 15 anos
Rei do Pop, Michael Jackson morreu há 15 anos

"Foi bonito ver as pessoas redescobrindo o Michael"

O encantamento pelo rei do pop, Michael Jackson, chegou na vida de Rodrigo Teaser na infância. Sempre que tocava alguma música do artista no rádio, ele começava a dançar. Quando sua mãe entendeu que o filho gostava do cantor, lhe presenteou com um disco.

Então, a paixão só cresceu. É cover do Michael desde 2005, quando a admiração também se tornou profissão. Quando o rei do pop morreu em 2009, após a administração de um anestésico, aquilo significava para Rodrigo o fim da trajetória como cover. "Naquele momento havia perdido o sentido para mim, eu sentia uma tristeza muito grande", explica.

Mas, ao continuar com suas apresentações já agendadas, foi ressignificando a perda. "Sempre seria triste pensar nele, escutar e cantar suas músicas, não conseguia mais ver como isso poderia ser divertido novamente. Mas, ao ver as pessoas indo às apresentações, foi bonito ver as pessoas redescobrindo o Michael", conta Rodrigo.

Seu trabalho como cover do Michael Jackson não findou com o artista, mas se transformou em uma grande homenagem. Após a partida de Michael, Rodrigo Teaser criou um grande show em homenagem ao cantor. Ele ainda roda o mundo com essa apresentação, levando o pop do rei aos antigos e aos novos fãs. "Meu trabalho hoje é olhar para o lado bonito do legado que ele deixou e sempre respeitar a obra do Michael", finaliza Rodrigo.

 

"O mercado se alimenta de tudo que é próprio do ser humano"

No episódio 10 da quinta temporada da série "Doctor Who", o personagem principal viaja no tempo e traz o pintor Van Gogh para os dias atuais, permitindo que o artista perceba que sua arte recebeu o merecido reconhecimento após a morte. E, assim como o pintor holandês, muitos artistas ganham destaque no pós-morte.

O jornalista e músico Caio Ramires fala que a ausência do artista é lucrativa para a indústria, seja ela de qual área for. "A exemplo disso, temos o Belchior, que passou anos sumido e ninguém foi atrás, mas quando ele morreu, foi uma comoção da indústria e da mídia".

Ele explica que o problema não é relembrar e homenagear o artista, mas esperar ele morrer para fazer isso. "O mercado tem que fazer crescer o artista em vida e não esperar ele falecer para se movimentar", elucida o músico. Apesar da visão crítica, Caio percebe a importância também da indústria trazer para a cena da música os artistas falecidos para apresentá-los às novas gerações.

A psicóloga Sarah Carneiro argumenta: "O mercado se alimenta de tudo que é próprio do ser humano, porque é natural que os fãs queiram se sentir próximos a esses artistas". Sarah complementa dizendo que, apesar dos lados negativos, a movimentação do mercado, com relançamentos e produtos, de alguma forma, proporciona conforto aos fãs durante o processo de luto.

 

Aguardo pelo dia que não doerá como ainda dói.

O luto é um sentimento que todos vão vivenciar. Ele é uma realidade há um tempo na minha vida. Há quase três anos perdi minha mãe, Tayzza Kelly de Paula. É uma dor indescritível e que, por mais que eu trabalhe diariamente com palavras, nunca vou achar aquelas que possam descrevê-la.

E há apenas seis meses passei novamente por essa dor, mas dessa vez, como fã. Liam Payne, ex-integrante da banda One Direction, morreu em outubro do último ano. Uma pessoa que fez parte da minha infância, adolescência e começo da vida adulta, morreu. Como explicar para as pessoas que eu estou chorando porque meu ídolo faleceu? Ainda mais quando sabem que a pessoa mais importante da minha vida também já fez a passagem?

Durante as entrevistas desta reportagem, foi impossível não me emocionar ao lembrar das dores com que convivo diariamente. Mas foi tão enriquecedor perceber que é, sim, normal chorar por aqueles que não conhecemos pessoalmente. O luto é um processo e um dia passa a não doer tanto e ser aquela "saudade boa" que tantos que já passaram por isso falam.

Aguardo pelo dia que não doerá como ainda dói.

Odara Creston, estudante de Jornalismo e estagiária do O POVO

 

Artista Raisa Christina
Artista Raisa Christina

Raisa Christina

As ilustrações que compõem esta matéria foram gentilmente cedidas por Raisa Christina. Ela é artista visual e escritora, nascida no Sertão Central do Ceará. Fez graduação e mestrado em Artes. É doutoranda em Literatura Comparada pelo PPGLetras da Universidade Federal do Ceará. Reside em Fortaleza, onde trabalha com ilustração, além de ministrar oficinas de desenho, pintura, escrita e arte contemporânea.

Conheça o trabalho: no Instagram @raisa.christina

 

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