Uma árvore centenária, de origens africanas, plantada por um senador na praça mais antiga da capital cearense. Entre as execuções da Confederação do Equador, em 1825, as primeiras partidas de futebol entre os marinheiros de navios ancorados no porto e uma restauração estrutural em 2007, é de se imaginar o quanto o solo fértil do Baobá do Passeio Público já testemunhou.
Sob o ponto de vista da árvore de nome científico "Adansonia digitata", “O Passeio do Baobá” conta a história do baobá do Passeio Público, traçando uma relação com a praça e as origens da planta no continente africano. Com uma abordagem infantil, mas direcionado a todos aqueles que têm curiosidade pela memória viva da cidade, o livro nasceu das inquietações de Vinícios Ferraz em abordar a educação patrimonial e a conscientização ambiental por meio da literacia antirracista.
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Aos 49 anos, Vinícios sempre foi um frequentador da Praça dos Mártires, desde a infância, quando seu avô Raimundo Ferraz o levou pela primeira vez.
Além da praça mais antiga da Cidade, o avô Raimundo, ao lado da avó Rita e da bisavó Maria, foram responsáveis por lhe apresentar as primeiras experiências com a oralidade, que iriam formar o futuro escritor do Mondubim.
“Através desses familiares, aprendi sobre o sertão, o messianismo, as lendas, as histórias de Trancoso e contos do povo... até sobre como alguns dos nossos antepassados seguiram para o Norte e histórias dos encantados povos da floresta. Nessa oralidade, mesmo de forma primária, personagens indígenas ou negros estavam presentes e começavam a me chamar a atenção”, pontua.
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Com a literatura fecundada em si desde a escrita de poesias e contos enquanto aluno da rede pública, a palavra ganhou outra dimensão para Vinícios quando o jovem resolveu visitar a Biblioteca Pública Municipal Dolor Barreira.
Na procura do rosto de um poeta com o qual pudesse se reconhecer, Vinícios encontrou não só um, mas vários: ver Abdias do Nascimento, Oliveira Silveira, Carolina de Jesus e tantos outros nomes nas estantes lhe lembraram de que havia pessoas com quem ele poderia se parecer.
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Partindo dessa premissa, em 2019, Vinícios começou sua jornada com os escritos infantojuvenis, com a publicação do livro “Bernardo sob o Céu Estrelado”, trazendo consigo sua bagagem educacional adquirida na graduação em Pedagogia.
“Eu sempre tive o gosto pela infância, o respeito pelas crianças e escolhi cursar pedagogia para buscar a linguagem da criança, conhecê-la melhor. Associado a isso, ao longo da minha vida, fui dimensionando a riqueza e o patrimônio cultural que a população negra deixou a este país, apesar de toda a violência criminosa da escravidão à qual foi submetida. Assim fui me constituindo como um escritor muito inclinado a revelar aos leitores a vida das crianças e jovens deste ‘Brasil Profundo’, cuja maior parte da população é negra ‘Preta e Parda’, mas que não é vista ou têm suas histórias contadas na literatura, como deveria ser”, defende.
Conectando territórios por meio de uma viagem conduzida com a narração do Baobá para o continente africano, a obra também busca desmistificar e revelar outras facetas de uma localidade que, por vezes, é reduzida às secas, guerras e epidemias.
Na vertente ambiental, Vinícios reitera que, ao contar a história da árvore, a expectativa é que aqueles que passam pelo cruzamento da Rua Dr. João Moreira com a Barão do Rio Branco possam relembrar em sua mente a importância do baobá como presença da ancestralidade negra no coração de Fortaleza.
“O livro nos leva a refletir sobre qual o significado que aquela árvore tem para nós. Observo todos os tipos de reação, desde pessoas que a abraçam, que sentam à sua sombra, que tiram fotografias, até aqueles que vandalizam, picham ou fazem cortes com canivetes em seu corpo”, manifesta em defesa do patrimônio de 115 anos.
Passeio Público é também a Praça dos Mártires. Você sabe o motivo?
Do recanto elitista ao espaço público abandonado, a praça, que foi tombada em 13 de abril de 1965 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), também é testemunho das transformações históricas de uma Cidade que segue em ebulição.
Sintetizando essa premissa, o educador resgata o termo africano “Sankofa”, que simboliza a busca por sabedoria, identidade e reconciliação com as raízes culturais e ancestrais de um povo.
“Gosto desse termo porque ele nos lembra de olhar para trás, saber de onde viemos, para compreender o nosso presente e projetar um futuro diferente. Ao apresentar o livro em espaços educativos diversos, educadores contam que crianças lhes dizem entusiasmadas que, após o contato com o livro, muitos foram ao Passeio Público pela primeira vez, ver o Baobá ao lado dos seus pais. O mais gratificante é ver essas famílias circulando pela Cidade a partir das referências do livro”, comemora.
A obra, que teve apoio da Secretaria de Cultura de Fortaleza através do Edital das Artes (Lei Paulo Gustavo), segue em circulação por meio de ações de lançamentos em escolas públicas e de doações para espaços culturais e bibliotecas comunitárias. Além disso, com tradução para o italiano, inglês e francês, a expectativa de Vinícios é que o livro possa se espalhar pelas mãos de muitos, que, mesmo sem conhecer o Baobá, consigam apreciar a universalidade da história.
“As obras foram traduzidas para diversos idiomas porque acredito na célebre frase de Lev Tolstói, ‘fale de sua aldeia e estará falando do mundo’. Um dos meus grandes desejos é levar as histórias do Ceará para o mundo e, para isso, enviarei o livro gratuitamente para instituições culturais e educacionais dos 8 países do continente africano que falam a língua portuguesa, para os EUA, Itália e França”, conta.
Com lançamento realizado na XV Bienal do Livro do Ceará, o livro, que simboliza a 18ª publicação do autor, conta com ilustrações de Carla Freitas, que enaltece os traços arquitetônicos de um local que adquiriu diversos significados com o passar do tempo.
“Carla trabalha com aquarela e diferentes técnicas de ilustração, se construindo como autodidata, motivada pela afetividade e compromisso estético com uma arte com propósito. As suas ilustrações respeitam os traços históricos da praça, ao passo que nos conduzem a um espaço onírico e ancestral, quando o Baobá nos convida a visitar, em sonho, o continente africano”, finaliza Vinícios.
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