"Estou voltando, me sinto melhor do que nunca, e estou trabalhando muito para garantir que este show seja um que você nunca vai esquecer", declarou Lady Gaga no final de fevereiro para anunciar seu show no Brasil. A dedicatória extensa tem um motivo traumático para os fãs brasileiros: em 2017, a cantora cancelou sua participação no Rock in Rio por motivos médicos, estendendo ainda mais o grande hiato desde que veio pela primeira vez, em 2012.
Neste sábado, 3, mais de uma década depois, a cantora se apresentará na Praia de Copacabana para mais de um milhão de pessoas - será a maior audiência da carreira, marco histórico insuperável que parece honrar uma espécie de "acerto de contas" com seu retorno. Entre fãs, admiradores e curiosos, também estão estrangeiros que não sabem se um dia a artista voltará à América do Sul. Dados do Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur) revelam que as emissões de passagens internacionais cresceram 41% em relação ao show da Madonna, realizado no mesmo período do ano passado, com maioria de argentinos e chilenos.
Embora tenha uma trajetória relativamente curta em comparação com outras grandes divas da música pop, Lady Gaga cravou uma relação visceral com seus fãs desde cedo, a quem ela mesmo apelidou de "Little Monsters" (pequenos monstros, em tradução direta). "Meu show é uma religião, e os fãs são parte de um culto", ela disse em entrevista do passado.
Evocando-a como uma "Mother Monster", os seguidores veem na sua explosão uma liberdade para aceitarem suas próprias estranhezas e ranhuras. Quando canta ao vivo "Vanish Into You", ela celebra a força desse vínculo diante da eternidade do seu símbolo: "Quando eu morrer, posso desaparecer em vocês?", cantou emocionada com os braços abertos para o público na sua última apresentação, cena que deve se repetir no Rio.
Do Brasil, fãs de todas as regiões foram chegando ao longo da semana para entrar na energia de um show vivido intensamente pela capital carioca. Bruno Natanael, 22 anos, saiu do interior do Ceará para realizar o sonho de infância.
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"Eu tinha 6 anos e transformava a sala da minha casa em um palco de dança. Eu sofria bullying e preconceito, e eu via a Gaga em mim. As músicas dela me ajudaram nos momentos mais sombrios. Vai ser a realização daquele sonho de criança que, no fundo, eu pensava que nunca iria acontecer".
Fã desde os 11 anos, Rodrigo Lopes, 26 anos, conta que está indo para o show celebrar a defesa da sua dissertação de mestrado em comunicação. Ele se mudou de Mossoró, no Rio Grande do Norte, para estudar em Fortaleza na Universidade Federal do Ceará (UFC).
"Para mim, foi coisa do destino. Eu ia terminar meu trabalho em abril, e show já no mês seguinte. Entreguei na semana passada, e agora estou encerrando esse ciclo", comentou. "Com o fim da minha bolsa, tive que fazer trabalhos extras para conseguir arcar com os gastos. Nunca abri mão desse sonho".
Dentre muitos dos que estão movendo montanhas para ir ao show, estão aqueles que passaram pela frustração do cancelamento da artista no Rock in Rio. Maikson Malaquias, 40 anos, conta sobre seu choque: "Eu cheguei ao Rio no dia em que ela anunciou que não viria mais. Eu fui sozinho, não sabia o que fazer. Então, na primeira especulação desse show, agora em Copacabana, eu já planejei toda a minha vida para conseguir ir".
Neste sábado, por volta das 21h45min, Lady Gaga deve apresentar o mesmo show que arrebatou público e crítica no Festival Coachella e, recentemente, em duas noites de estádio lotado na Cidade do México. Focado no seu mais recente álbum, "MAYHEM", lançado em março, o repertório traz também alguns dos seus grandes sucessos anteriores, como "Bad Romance", "Shallow", "Born This Way", "Alejandro" e "Paparazzi".
Dinâmica recorrente nas suas músicas desde que nasceu como uma caricatura da estrela pop em "The Fame" (2008), o show é chamado de "A Arte do Caos Pessoal" por rivalizar monstro e criatura: Lady Gaga e Stefani Germanotta, no centro do palco, duelam para ver quem mantém o controle. Na performance de "Poker Face", ela trava uma batalha de dança em cima de um tabuleiro de xadrez. Em "Disease", ela parte para o combate físico contra a "Mulher de Vermelho", persona que aparece no clipe do seu hit solo mais recente, "Abracadabra".
"Eu serei a sua celebridade perfeita", canta enterrada ao lado de um esqueleto. Tendo a consciência do seu lugar na indústria pop, principalmente por surgir no limiar entre as mídias físicas e a cultura de streaming, Lady Gaga sabe o poder que tem pelo mundo. Se algum brasileiro esqueceu ou ainda não sabe disso, hoje à noite será lembrado.
Monstra da moda
Texto de Larissa Viegas, jornalista e pesquisadora de moda
Perucas extravagantes, maquiagem artística, sapatos marcantes, roupas icônicas, acessórios nada básicos. A descrição poderia ser do figurino de uma peça teatral, de um filme ou até de um desfile. E, no fim, Lady Gaga é, muitas vezes, tudo isso e mais um pouco.
A artista vem ao Brasil pela segunda vez em quase 20 anos de carreira para um verdadeiro espetáculo, programado para a noite deste sábado, 3, nas areias de Copacabana, no Rio de Janeiro.
E se tem algo, além da apresentação musical, que milhares de fãs aguardam antes mesmo da confirmação desse encontro, é o guarda-roupa que será responsável por "ilustrar" sua performance.
Sem negar inspirações em ícones como Madonna, Michael Jackson, David Bowie e Freddie Mercury, Gaga leva literalmente a premissa de que o ato de vestir-se é, sim, uma forma de expressão.
Não é preciso muito esforço para perceber que a personalidade e o humor da artista são traduzidos pelas suas escolhas fashion. Traçando uma breve trajetória de sua carreira, vemos uma cantora vestida de carne crua que permite diferentes interpretações e, ao mesmo tempo, uma elegante mulher premiada com o Oscar em um vestido preto maximalista de cintura acentuada e quadris volumosos.
Há ainda um grande laço loiro feito com o próprio cabelo e um óculos preto Ray-ban; uma pegada quase romântica, com um cavalo branco e um delicado vestido lavanda (Versace, claro); e uma apoiadora política com sua jaqueta azul-marinho, faille vermelho de seda perfeitamente estruturado e um grande broche de pomba dourado (oi, semiótica!), na posse dos então eleitos Joe Biden e Kamala Harris.
Se por um lado o visual de Gaga segue sendo uma surpresa, há muitos anos a artista já provou que nenhum look se torna memorável sem as atitudes de quem o veste. E que "pequenos monstros" como Alexander McQueen, Marc Jacobs e Givenchy são, sim, tradutores de sonhos, momentos e posicionamentos.
Nem unânime nem monótona: Gaga, a atriz
Texto de Renato Abê, jornalista, dramaturgo e especialista em Artes Cênicas
Stefani Germanotta sabe compor personagens com riqueza singular. A sua maior criação, a própria persona Lady Gaga, é a grande prova. A jovem compositora e pianista tímida de Manhattan se metamorfoseou em uma diva pop capaz de traduzir sentimentos de fãs mundo afora e, desde que surgiu no mainstream em 2008, é uma das protagonistas da indústria cultural global.
A teatralidade está na base do seu fazer artístico. Das composições ao figurino, dos palcos aos clipes, das entrevistas que concede ao comportamento nas redes sociais. A artista carrega de sentido cênico cada ato dessa grande ópera-rock que é sua criativa carreira.
Não à toa, vem trilhando caminho como atriz no cinema e na televisão. Em 2015, quando surgiu dando vida à macabra Elizabeth na série "American Horror Story", Gaga conseguiu passear pelo terreno já conhecido do terror sem soar redundante. Ganhou Globo de Ouro de Melhor Atriz e se jogou na busca por uma atuação cada vez mais profunda.
Da sonhadora Ally de "Nasce Uma Estrela" (2018), passando pela inconstante Patrizia em "Casa Gucci" (2021) e chegando à controversa Lee em "Coringa: Delírio a Dois" (2024), ela se permitiu arriscar - e também errar - em grandes produções. A crítica especializada, nada unânime, parece fazer ainda mais sentido na dramaturgia nada monótona que é o caminho de Stefani.
Alinhada ao Método Stanislavski, que prega a conexão do ator com as emoções e propósitos do personagem, a artista já virou até piada pelos comportamentos inusitados nos sets de gravação. Ela não se desvencilha das suas criações e mergulha na composição de personagem sem receios. Em "Coringa", por exemplo, pedia para ser chamada de Lee mesmo fora da cena.
Toda essa carga dramática, entre personagens e personas criadas para seus discos, deságua agora no majestoso palco de Copacabana. Num cenário épico, Stefani, Gaga e suas outras criaturas e criadoras devem entregar ao público um espetáculo inesquecível.
Imersão com respeito
Texto de Marcos Sampaio, jornalista e crítico de música
Todo dia, uma centena de novas vozes surge no mundo dizendo que cantam jazz. Para a maioria delas, abordar clássicos do cancioneiro popular norte-americano, joias de Cole Porter, George Gershwin e Oscar Hammerstein, ou os clichês da bossa nova, por exemplo, é o suficiente. Por isso mesmo, ser um bom(boa) cantor(a) de jazz dá trabalho: a concorrência é imensa. Quando Lady Gaga resolve lançar um disco de jazz, ela já começa a corrida com uns bons pontos de vantagem. É famosa, tem o talento reconhecido e tem uma legião de fãs que vai defendê-la de qualquer possível deslize. Para parecer uma veterana no estilo, ainda foi ao lado do mestre Tony Bennett que Gaga se embrenhou nesse universo. Ela não é a primeira nem a última estrela pop que se aventura no jazz, mas é um caso raro de artista que dedicou três álbuns ao estilo, e todos ao lado do mesmo parceiro. Bennett era um príncipe na elegância e um curioso na busca por novos repertórios e parceiros. Juntos, ambos descobriram novas formas de trabalhar na música enquanto se divertem. Tendo dedicado seus anos a fazer duetos com artistas de diferentes gerações, Tony foi popularizando seu som, se aproximou de novos públicos e rejuvenesceu o próprio espírito. Em um desses trabalhos, surgiu Gaga, que fisgou o coração do crooner e não quis largar mais. Ou seja, sem nunca ter deixado de ser mesmo uma voz do pop, ela fez dessa parceria jazzística mais do que uma nova busca estética ou artística. Mas uma forma de se aproximar de um ídolo e de um amigo.
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