"E o tempo se rói com inveja de mim, me vigia querendo aprender. Como eu morro de amor pra tentar reviver", canta Nana na faixa "Resposta ao Tempo", originalmente escrita por Cristovão Bastos e Aldir Blanc, em 1997.
Lançado em 1998, o bolero na voz de Nana Caymmi foi responsável por dar o tom da abertura da minissérie "Hilda Furacão", da TV Globo. Posteriormente, a cantora carioca teria 48 músicas incluídas em trilhas sonoras de novelas, transpondo seu timbre como sinônimo da carga emocional da teledramaturgia brasileira.
Nascida Dinahir Tostes Caymmi, em 29 de abril de 1941, a artista é fruto do casamento entre a cantora Stella Maris e Dorival Caymmi, ícone da música brasileira que difundiu os ritmos e o modo de viver dos soteropolitanos por meio do samba.
Acostumada a testemunhar reuniões entre João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes no escritório do pai, em entrevistas, Nana afirma ter aprendido a cantar antes mesmo de saber ler.
Com um pai que achava que a carreira artística era dura demais para uma mulher e relutava em ver a filha nos palcos, Dinahir começou a cantar em festas da família e em pequenos eventos, tendo sua estreia profissional marcada para os anos 1960.
À época, após uma vocação que ultrapassava os limites da herança artística, Nana entrou no estúdio pela primeira vez com Dorival para fazer sua primeira gravação, "Acalanto", canção de ninar feita para ela pelo pai.
Ao longo dos 65 anos de carreira seguintes, de acordo com o Instituto Memória Musical Brasileira, Nana gravou 31 álbuns de estúdio e três projetos em DVD.
Dentre eles, a cantora, que sempre manteve vivo o legado do pai, mergulhou com profundidade e personalidade no mar de canções, sambas e sambas-canção de Dorival — dedicando três álbuns ao cancioneiro do pai entre 2002 e 2013. O último, "Caymmi" (2013), foi um tributo póstumo de Nana e dos irmãos Danilo Caymmi e Dori Caymmi ao pai, morto havia então cinco anos.
A cantora, que lutava havia 9 meses contra uma arritmia cardíaca, faleceu nesta quinta, 1º. E, apesar do coração em descompasso, segue na tentativa eterna de permanecer na memória daqueles que vivem.
"Eu perdi uma grande amiga hoje. O Brasil perdeu A VOZ. Quem poderá esquecer Nana Caymmi?", publicou Alcione em suas redes sociais. Assim como ela, figuram no rol de artistas que lamentaram sua morte Milton Nascimento, Djavan, Caetano Veloso e Walcyr Carrasco, que acompanhou de perto seu trabalho fonográfico em consonância com a dramaturgia.
Entre diversas postagens, a que gerou maior repercussão entre o público foi a imagem compartilhada por Gilberto Gil em seus stories.
Gil e Nana se casaram em 1967, quando o baiano ainda era um jovem artista em ascensão. À época, ela havia acabado de vencer o I Festival Internacional da Canção da TV Globo, interpretando a canção "Saveiros", do irmão Dori com Nelson Motta.
O curto casamento foi interrompido em 1969, momento em que o tropicalista se exilou na Inglaterra sob a ameaça do regime ditatorial.
Para além do passado a dois, a surpresa da publicação de Gil veio após uma série de desavenças em 2019. Em março, em entrevista que durou 71 minutos e contou com 89 palavrões, concedida à Folha de Sâo Paulo, Nana chocou ao atacar Gil, Caetano e Chico após a eleição de Jair Bolsonaro, a quem ela declarou voto no segundo turno.
Tecendo críticas também à sobrinha Alice Caymmi, a intérprete falou que "todos deveriam ir fazer companhia ao Lula no Paraná", onde à época o político estava preso.
Apesar das desavenças, Gil pontuou em entrevista concedida ao portal UOL após a morte da cantora: "Sempre que nos visitávamos, tínhamos muito carinho. Intensidade sempre muito forte, ela sempre foi muito intensa. São lembranças que vão ficar comigo até os meus últimos dias, também, já que os últimos dias dela já se foram", refletiu.
Nana deixa três filhos, frutos de seu casamento com o médico Gilberto José Aponte Paoli. Em 1961, o casal largou a vida no Brasil e passou um período na Venezuela.
Para uns, intensa em demasia; para outros, com a autenticidade necessária a uma intérprete que marcou a fonografia da música popular brasileira, Nana Caymmi faleceu aos 84 anos, após uma luta intensa contra várias comorbidades durante uma internação de 9 meses em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Leia no O POVO + | Confira mais histórias e opiniões sobre música na coluna Discografia, com Marcos Sampaio
Uma estilista da voz
Quem vai a um show de Paulinho da Viola tem duas certezas: a primeira é que vai ver um show de samba, a segunda é que esse samba não se parece com os sambas de gente como Ferrugem, Mumuzinho ou Só Pra Contrariar. O mesmo com quem vai a um show de Renato Teixeira ou Almir Sater. Eles fazem música sertaneja, mas o sertão deles em nada se compara com as dezenas de duplas que lotam estádios falando – aos gritos – sobre amores desfeitos, bebedeiras e baladas.
Embora pareça (e seja, de certa forma) um comparativo de qualidade, o que separa paulinhos, renatos e almirs dos demais é o apego ao estilo. Eles não querem reinventar, recriar, mudar ou modernizar. Eles só querem ser instrumentos do estilo que aprenderam a ouvir e reverenciar desde que nasceram. Ou seja, eles cantam o que cantam por que não saberiam fazer outra coisa. Nana Caymmi é exatamente assim.
Dona de uma voz etérea, de timbre meio rouco, quente, delicado e agudo, ela cantava de olhos fechados, como quem reza. Tudo tinha profundidade e horizonte, como o mar que seu pai, Dorival, tanto cantou. Nana não era baiana como ele, mas herdou essa alma praieira e até tinha como meta gravar tudo que foi escrito pelo pai. Não sei se ela alcançou o objetivo, mas foram vários discos dedicados ao repertório do patriarca da família Caymmi.
Entre um e outro, Nana, que nasceu Dinahir Tostes Caymmi, gravou Tom Jobim, Tito Madi, Dolores Duran, Fátima Guedes, Guinga, Cassiano e vários outros compositores e compositoras. Para todos, ela deu o mesmo tratamento cuidadoso, o mesmo refino, a mesma interpretação que trata cada sílaba de cada palavra com carinho. Sua técnica foi aprendida na vida, no palco, no convívio com tantos que frequentavam a casa de uma das famílias mais importantes da MPB. Há quem diga que ela desafinava e é bem provável que isso acontecesse. Afinal, só um trabalho demasiado humano é capaz de provocar falhas.
Mas, voltando ao estilo, era dessa humanidade que ela arrancava sentimentos profundos em interpretações que foram imortalizadas. No impecável disco “Voz e Suor”, ela e o pianista César Camargo Mariano guiam o ouvinte por uma trilha sonora de sensações que nem ganharam nome ainda. Parte da trilha sonora do filme “Pequeno dicionário amoroso”, difícil imaginar outra voz cantando “Céu de Jade” ao lado do compositor João Nabuco. O mesmo em “Solidão”, dueto dela com Flávio Venturini.
O apego ao próprio estilo fez de Nana Caymmi um nome famoso que vendia poucos discos, teve raros sucessos populares e fazia shows para pequenos públicos. Mas eram públicos que estavam dispostos a ouvir – com atenção! – o que sua voz sabia fazer de melhor. Essa mesma voz era capaz também de disparar palavrões, render entrevistas polêmicas, criticar colegas de profissão e provocar risadas nos shows. Mas isso também faz parte da sua alma demasiada humana.
Por Marcos Sampaio, jornalista e crítico de música